Reconhecida como uma das maiores escritoras de histórias policiais de todos os tempos, a britânica Agatha Christie publicou mais de oitenta livros, recebeu o apelido carinhoso de Rainha do Crime e, eventualmente, tornou-se um ícone da cultura pop. O resultado de sua carreira é uma quantidade esmagadora de títulos conhecidos mundialmente e adaptados – não uma, mas inúmeras vezes – para o teatro, o rádio, a televisão e o cinema. E, por mais que seja complicado arriscar um palpite desse tipo em relação a Agatha, esse tal de Assassinato no Expresso do Oriente deve ser um dos principais.
A história continua praticamente idêntica a que foi apresentada em todas as outras quatro adaptações para o cinema, inclusive na versão (a mais famosa até então) que foi dirigida por Sidney Lumet em 1974. Mesmo assim, colocando as cartas na mesa, o longa acompanha o famoso Expresso do Oriente em uma viagem interrompida tanto por uma avalanche, quanto por um misterioso assassinato. Preso no meio do nada à espera de ajuda, o grande Hercule Poirot precisa descobrir um culpado que também entre os poucos passageiros do trem.
Em busca de criar alguma diferenciação entre as tantas adaptações, o roteiro de Michael Green (American Gods) faz uma aposta certeira ao apresentar, através de um pequeno mistério de abertura, os talentos e a personalidade do maior detetive do mundo, posicionando-o entre o excêntrico, o caricato e o carismático com muita facilidade. O texto precisa de poucos diálogos e alguns objetos para estabelecer o personagem com facilidade e preparar o espectador para o que pode acontecer quando o assassinato escancarado pelo título entrar em cena.
Essa decisão faz ainda mais sentido quando o texto revela Poirot como seu verdadeiro protagonista, “rebaixando” o restante do elenco de luxo ao posto de meros coadjuvantes sem que isso seja ruim. O filme apenas escolhe construir o filme em torno da figura de um detetive que, apesar de ser extremamente inteligente, tem algo para aprender. Em outras palavras, Hercule Poirot possui um arco valioso dentro da trama e cresce como personagem quando precisa mudar sua forma de pensar quando entende que o mundo que não é simplesmente preto e branco. Ele começa o filme de um jeito e termina de outro, e essa é a regra básica de bons arcos narrativos.
E os acertos do texto de Green não param por aí. As pistas vão surgindo aos poucos, as reviravoltas surgem na hora certa e a construção do mistério consegue prender a atenção do público durante boa parte do segundo ato, aproveitando inclusive a adição de algumas sacadas muito boas. Os flashbacks, por exemplo, se destacam pela fotografia envelhecida e tornam-se peças fundamentais mesmo sem existirem no livro.
Com um bigode majestoso, Kenneth Branagh (Dunkirk) carrega o filme nas costas como um Hercule Poirot que convence e conquista o público desde os primeiros minutos, no entanto isso não impede que o longa dependa fortemente das outras engrenagens – ou suspeitos – para funcionar. Uns tem mais importância que outros (assim como acontece no livro), mas o importante é que todos eles cumprem seu função dentro da trama com perfeição. Entre um elenco tão grande e recheado de estrelas, Daisy Ridley (Star Wars: O Despertar da Força), Michelle Pfeiffer (Mãe!) e Josh Gad (A Bela e a Fera) são aqueles que possuem mais tempo de tela e, merecidamente, roubam os holofotes com mais frequência.
Entretanto, apesar de todos os acertos listados até aqui, as verdadeiras estrelas de Assassinato no Expresso do Oriente acabam sendo, na minha opinião, os aspectos técnicos e o trabalho irrepreensível de Branagh por trás das câmeras. A fotografia de Haris Zambarloukos (Thor), a escolha criativa de alguns posicionamentos de câmera, a recriação de paisagens em CGI nos belíssimos planos abertos, as mudanças de cenários para os interrogatórios, a construção cuidadosa dos cenários internos e a teatralidade imposta pelo passado shakespeariano do diretor são peças que encontram seu lugar no charme que percorre a estética narrativa, ajudam a guiar o olhar do espectador e, acima de tudo, injetam dinâmica para um filme apoiado quase exclusivamente em diálogos.
A grande carga de conversas básicas e a repetição de certos segmentos fazem com que o segundo ato seja um pouco arrastado, mas não chega ao ponto de destruir a experiência. O mesmo pode ser dito de uma resolução de crime que, dentro do esperado, vai impactar de formas completamente diferentes quem conhece ou não o material original. Quem já leu o livro pode acabar se decepcionando um pouquinho com a construção dos últimos minutos, porém isso não significa que a conclusão realmente falhou. Na verdade, ela percorre o caminho contrário ao recriar a Santa Ceia de forma genial e encerrar perfeitamente o já citado arco de Hercule Poirot com um bom encaixe.
Dessa forma, Assassinato no Expresso do Oriente cumpre a maior parte de sua proposta ao funcionar como uma comédia de ação que fisga o público no primeiro ato, um suspense levemente arrastado no meio da narrativa e um final que costura tudo com fidelidade e dignidade, garantindo que a memória de Agatha Christie continue viva na cultura pop. Pode não ser o filme mais memorável e surpreendente do ano, mas a eficiência da equipe técnica, a meticulosidade de um protagonista que deixa um gostinho de quero mais e as possibilidades de criar uma franquia dentro dos moldes modernos garantem que o longa mereça sua atenção.
OBS 1: A sequência, que seria a adaptação de Morte no Nilo, ainda não recebeu a luz verde, mas parece estar muito próxima de virar realidade.