Mãe!

 

Desde o princípio, Darren Aronofsky deixou claro que gostaria de investigar o ser humano em sua essência, olhando principalmente para o interior de nossas mentes durante momentos de autodestruição gerados pela dependência em drogas (Réquiem para um Sonho) ou pela obsessão profissional (Cisne Negro). Mesmo em seu maior blockbuster, o diretor encontrou alguma forma de representar a crise de fé enfrentada por Noé no isolamento promovido pelo dilúvio. Andando na total contramão do terror vendido pela campanha de divulgação, Mãe! abusa das referências bíblicas e mergulha na mesma proposta temática através da degradação do planeta e da tal maternidade que nomeia o projeto.

 

Seu alvo dessa vez é uma jovem que vive todo o seu tempo em uma casa isolada ao lado do marido, um reconhecido poeta. Tudo muda quanto hóspedes inesperados perturbam sua estadia. Essa mulher – denominada apenas como mãe para ampliar seu isolamento a um mero arquétipo – conduz nosso olhar com a visceralidade de quem está tendo sua vida virada de cabeça pra baixo. Toda a história se passa em sua mente (isso não significa que ela está imaginando tudo) e a câmera sufocante de Aronofsky não deixa espaço para dúvidas nesse aspecto. O foco narrativo está completamente voltado para o ponto de vista da personagem e transita entre três enquadramentos principais: o over the shoulder que acompanha seus movimentos, a câmera subjetiva que se concentra no seu olhar e muitos close-ups fechados em seu rosto.

 

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Os planos mais abertos surgem em doses homeopáticas para oferecer algum respiro ao espectador e a restrição de planos diferenciados cria uma aura de claustrofobia que só aumenta com a escolha de situar o filme em apenas um cenário. A casa é bem grande, porém Aronofsky faz questão de não explorá-la com a tranquilidade do travellings típicos do terror (aqueles que James Wan usa tão bem em Invocação do Mal), e ainda lançar tudo em um jogo de cortes bruscos e movimentos trépidos que, apesar do caos forjado, não se perde na confusão. Junto com a crescente que torna o longa cada vez mais megalomaníaco, opressor e perturbador (uma das sequências finais tem potencil para tirar pessoas da sala de cinema), essa é uma das poucas características que aproximam Mãe! do horror como gênero.

 

O outro aspecto que reforça essa relação e ressalta aos olhos (ou ouvidos, nesse caso) do espectador é seu magnífico design de som. O longa substitui a trilha sonora por uma colagem milimétrica de efeitos sonoros que se estendem para criar suspense, transformar a própria casa em um personagem vivo – algo muito importante no final das contas – e manipular a mente do espectador com uma facilidade incomum. Ou seja, além de produzir uma obra visualmente impecável, Aronofsky transforma Mãe! em uma experiência sensorial de tirar o chapéu.

 

Cercados por uma falsidade que se mostra latente em cada linha de diálogo, os atores reagem muito bem a essa profusão de estímulos cinematográficos e temáticos sugerida pelo diretor. Jennifer Lawrence (Passageiros) é quem rouba todos os holofotes, já que a câmera está apontada para a sua personagem em pelos menos 90% do tempo. Mais do que isso, o longa depende de sua representação de medo, angústia e raiva para impactar o público, sendo que essa mãe é literalmente o centro de todas as metáforas contidas nos 120 minutos de projeção.

 

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No entanto, isso não impede que Javier Bardem (007 – Operação Skyfall) se destaque ao representar tanto o afastamento de um casal nos olhares direcionados a Lawrence, quanto a paixão alimentada pelo fervor de seus fãs/fiéis. Do outro lado, Ed Harris (Westworld) e Michelle Pfeiffer (Stardust: O Mistério da Estrela) constroem personagens que transpiram sarcasmo e sensualidade perante o fruto proibido. Eles cumprem com perfeição seus papéis em uma das referências bíblicas mais bem construídas da produção, assim como os irmãos – na vida real e na tela – Brian e  Domhnall Gleeson (Questão de Tempo) e todos os pseudo-zumbis que se alimentam da própria degradação do ser humano.

 

Fora essa reconstrução bíblica que posteriormente se revela como um dos principais fios condutores da produção, a trama em si é bem frágil, vaga em diversos momentos e completamente dependente das metáforas e alegorias que vão se acumulando a cada ato. O filme definitivamente fala sobre muita coisa (obsessão por artistas, machismo, casamento, fanatismo religioso, imigração e etc…), mas depende de esbarrar em um espectador disposto a prestar atenção e cavar em busca de todas as respostas. Isso não pode ser encarado como um problema quando se leva em conta que a proposta do filme passa pelo choque causado por essa construção subjetiva, porém, assim como o personagem de Javier Bardem deixa claro na frase usada como subtítulo, é importante ter em mente que cada pessoa pode entender o filme da sua própria forma. O filme possibilita isso e merece ser acompanhado por uma bela discussão pós-sessão.

 

Mãe! 6

 

Dentro disso, a verdade é que Mãe! não foi feito para qualquer pessoa e pode gerar opiniões complemente opostas em um piscar de olhos. Esse contexto amplo faz com que seja deveras complicado chegar a alguma conclusão sem entregar algo decisivo, então vou me ater a afirmar que EU gosto dessa sensação de abandonar o conforto de uma narrativa linear e aproveitar a experiência como um todo, mesmo precisando de algumas leituras (essa matéria pode ajudar) para atingir uma compreensão próxima da total. Se você faz parte do grupo que prefere enquadrar tudo em caixinhas genéricas e apenas se divertir em um filme, apenas ignore a passagem desse longa pelos cinemas. Contudo, saiba que você vai estar abrindo mão da obra mais perturbadora, angustiante e original de 2017.

 


OBS 1: Meu objetivo realmente foi esconder as minhas próprias conclusões para não atrapalhar qualquer outra interpretação que possa surgir nos cinemas. Essa é a beleza de Mãe! e eu espero que tenha entregado um texto digno dessa grandiosidade.

 

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