Incompatível com a Vida – Crítica | Luto precoce e violência institucional

incompatível com a vida
Foto: Divulgação Descoloniza Filmes

Eliza Capai ganhou certa notoriedade com o público geral após dirigir o controverso “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime” em 2021. Agora, a diretora retorna às telonas com “Incompatível com a Vida”, um novo documentário que aborda um tema completamente diferente, envolvendo gravidez e políticas públicas para mulheres.

Qual a trama de “Incompatível com a Vida”?

Eliza registra sua própria gravidez e as dificuldades enfrentadas por ela ao descobrir que seu bebê possuía uma síndrome que tornaria impossível a sobrevivência extrauterina, devido a uma má formação. Para enriquecer seu relato, ela entrevista, também, diversas outras mães que passaram pelo mesmo problema, com realidades sociais e crenças completamente diferentes, essas mulheres contam como lidaram com a situação e como foram afetadas pelo trauma.

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Foto: Divulgação Descoloniza Filmes

O que achamos do filme?

Desde já é preciso esclarecer que o filme abre com um aviso de gatilho referente aos temas sensíveis que aborda sobre gravidez, então me sinto na obrigação de reforçar o alerta para mulheres e pessoas com útero que tenham alguma restrição em relação a essa temática, assistam no seu tempo e somente se/quando estiverem emocionalmente preparadas.

A razão pela qual eu reitero o aviso de gatilho é justamente porque o filme não suaviza os temas que aborda, e nem deveria fazê-lo, já que ser mãe é um processo doloroso tanto físico como emocionalmente e a gestação, por si só, impõe uma série de desafios a mulher que se intensificam ainda mais no contexto machista em que vivemos. Então a escolha por retratar essas dores não surge de um viés exploratório típico dos torture porn, mas sim de uma abordagem crua e honesta sobre gravidez.

Nesse caso há um recorte ainda mais especifico, de uma realidade ainda mais cruel. A princípio parece que o filme vai tratar sobre gestantes durante a pandemia – já que esse foi o caso da diretora e é o primeiro relato que vemos – mas o longa não vai por esse caminho. Na verdade, o ponto de interesse é a história de mães que descobrem que estão carregando em seu ventre alguém sem nenhuma chance de sobreviver e antes mesmo de segurarem seus filhos no colo pela primeira vez, já precisam aprender a lidar com o luto precoce.

No entanto, não é um filme “apenas” sobre luto, mas sim o luto potencializado pela violência estatal perpetrada contra essas mulheres ao não lhes permitirem o direito de realizarem um aborto prático e seguro, restando-lhes três opções igualmente absurdas: apelar para um aborto ilegal correndo risco de vida; enfrentar um demorado e desgastante processo judicial que as vitimiza ainda mais, perante a um judiciário tipicamente machista e burocrático, para caso consigam autorização, tenham que lidar com a falta de hospitais interessados em realizar o procedimento, seja na rede pública ou privada; ou carregar a gestação a termo sem perspectiva nenhuma de um dia criar aquele bebê.

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Foto: Divulgação Descoloniza Filmes

 

Além da impossibilidade de decidir como lidar com aquela gravidez, que por si só já é um acinte, todas as entrevistadas, sem exceção, sofreram alguma forma de violência obstétrica. Independente de qual das alternativas acima tivessem optado, o descaso da equipe médica e a falta de preparo para lidar com a situação potencializa ainda mais a vulnerabilidade daquelas pessoas. Uma delas, que a princípio havia optado pelo aborto ilegal, recebeu comprimidos falsos, depois quando procurou fazê-lo de forma lícita escutou que se não tivesse autorização judicial sairia de lá algemada. À outra, que escolheu gestar até o final, foi negado o direito de segurar seu bebê no curto período de tempo em que ficou viva.

Quando recebem o resultado dos exames que mostram a anomalia que impedirá a sobrevivência de seu filho, as mulheres ouvem dos médicos que a síndrome que possuem é “incompatível com a vida” para explicar a impossibilidade de vida fora do útero, já que parte do cérebro fica exposta. Mas o título do documentário também pode ser interpretado em um sentido mais amplo, já que o sistema de saúde que nega acesso básico a um aborto SIMPLES e LEGAL – não só nesses casos – também é incompatível com a vida feminina.

É nesse ponto que a diretora serve de contraste, já que ao viver, na época, em Portugal teve a possibilidade de optar por um aborto desburocratizado e sofreu muito para realiza-lo, mas sofreu de forma segura e amplamente amparada, sem precisar sofrer duplamente nas mãos do Estado.

Há ainda uma outra denúncia, por reunir uma gama de mulheres com panoramas sociais bastante distintos, o filme nos mostra que apesar do sofrimento emocional suportado ser comum para todas aquelas mães, as realidades na qual estão inseridas, a condição financeira que tem e o sistema de apoio em torno delas é destoante e quanto mais a margem da sociedade se encontram, mais são vitimizadas pelo sistema. O relato de todas é igualmente triste, mas é possível ver que para algumas – uma em especifico – além do sofrimento próprio de perder uma filha, há um fator agravante: o contexto social precário no qual está inserida.

Para além de um retrato sobre gravidez, maternidade e luto, “Incompatível com a Vida” é um alerta contra a precariedade das políticas públicas destinadas às mulheres, o quanto avançamos nem se compara com o quanto ainda é preciso avançar em termos de mentalidade e práticas concretas.


Incompatível com a Vida está em cartaz nos cinemas brasileiros

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