Capitu e o Capítulo | A ironia de Machado e Bressane

Capitu e o Capítulo
Foto: Divulgação / Viviane D’Avila

Uma mistura de experimentalismo, ironia e metalinguagem, Capitu e o Capítulo parte do texto mais conhecido de Machado de Assis para expor as rachaduras da formalidade social


Admito que não li tantos livros ou contos de Machado de Assis quanto gostaria ou deveria, mas sempre admirei a forma como ele descrevia personagens, cenários e até mesmo pensamentos. Um mestre das palavras que usa os costumes sociais como pano de fundo “para sugerir uma reflexão crítica acerca dos valores humanos” (França e Paula, 2017).

Parte do movimento literário realista, Machado abraçou algumas das principais características da época  – em especial, a crítica à burguesia e o condicionamento do homem ao meio social. Porém, fazia isso por meio de pontuações psicológicas e filosóficas que tocavam justamente nas contradições de seres humanos presos em realidades que nem sempre cruzaram com a vida do autor. 

No mesmo artigo que citei acima, Raimunda Inês Gonçalves França e Douglas Ferreira de Paula abordam a ironia tanto como um recurso estilístico quanto como uma forma de explicitar as aparências, tornando-a “central dentro de obras literárias que trabalham com a realidade do mundo, que vive de aparências e convenções”

Machado de Assis viveu em uma sociedade cheia de privilégios, preconceitos e desigualdades, que fazia o possível e o impossível para esconder as violências de um passado escravista sob disfarces formais. E é exatamente quando retrata essa sociedade abastada que o autor coloca em cena toda a ironia e o sarcasmo com uma sutileza peculiar.

Não é uma literatura alegórica e escancaradamente satírica, mas a ironia se desenvolve nos detalhes sórdidos que todos tentavam manter escondidos. Uma essência que Júlio Bressane (não por coincidência, um dos melhores diretores brasileiros de todos os tempos) consegue capturar muito bem em Capitu e o Capítulo

Capitu e o Capítulo
Foto: Divulgação / Viviane D’Avila

Qual é a história de Capitu e o Capítulo?

Olhares, atitudes, vicissitude e passionalidade, novas e antigas percepções. Trama que permeia a inquietude trazida pelo sentimento mais primitivo que o ser humano pode experimentar, criando e sorvendo o fantasma criado pelo ciúme, desdobrando-se em intrigas capitulares criadas por Bentinho em devaneios que o tomam sobremaneira pelo amor doentio por sua Capitu.

A sinopse oficial de Capitu e o Capítulo é misteriosa e pouco fala sobre qualquer lapso de trama, deixando no ar que se trata de uma adaptação de Dom Casmurro. No entanto, o que Bressane faz aqui está mais para é uma dança experimental que expande a figura do narrador e apresentam, na personalidade incisiva de Capitu e nas respostas titubeantes de Bentinho, uma espécie de reinvenção desse clássico recheado pelo suprassumo da ironia machadiana. 

O que achamos de Capitu e o Capítulo?

Capítulo e o Capítulo é, à primeira vista, uma obra formalmente rígida, mas antes de chegar a qualquer conclusão sobre isso precisamos lembrar que o termo formal possui várias interpretações. A mais óbvia se refere às formalidades que compõem a linguagem, os modos e os hábitos das pessoas que fazem parte da classe mais alta.

Porém, quando falamos de imagens, o termo formal pode estar ligado à maneira como o autor aborda as formas ali presentes. Nesse caso, estamos falando de um aspecto da semiótica que dialoga com a forma como um diretor lida com o tema e constrói suas imagens, caminhando junto ou não com as formalidades linguísticas e sociais. 

Esclarecer isso é importante, uma vez que, pra mim, o grande trunfo de Capitu e o Capítulo é ser formalmente rígido e ao mesmo tempo muito criativo na maneira de lidar com a forma.

Capitu e o Capítulo
Foto: Divulgação / Viviane D’Avila

É só notar como os personagens estão sempre em poses clássicas e teatrais, falando com um português extremamente correto e próximo da literatura realista enquanto fazem reflexões sobre poesia em encenações centralizadas que beiram o artificial. Todos estão presos na obrigação de manter os modos e, ironicamente, não conseguem se libertar de tais formalidades. 

De certa forma, o longa me fez lembrar de Malmkrog, um filme romeno de 3 horas e 20 minutos que também apresenta a aristocracia a partir de suas formalidades, enquanto uma lente de aumento irônica para satirizar com sutileza os absurdos cometidos por essa classe. A diferença é que Bressane mergulha mais fundo no desejo de mostrar as rupturas e, consequentemente, arregaça-las perante um público que, segundo o próprio diretor, fica muito tempo pensando se Capitu traiu ou não

É por isso que o diretor segue o caminho inverso na sua abordagem formal, realizando inserções dissonantes em termos de estilo, tom e tempo. Imagens deslocadas do século 19 que priorizam as sensações, expondo a soberba da encenação ao mesmo tempo em que tira os personagens da prisão em que eles se encontram. Com o foco mais nas entrelinhas do que nas alegorias, assim como Machado de Assis, apesar de não se tratar de uma adaptação. 

Ainda que Capitu e o Capítulo leve a sério sua sutileza e não entregue nada de mão beijada, eu fiquei com a impressão de que as inserções modernas andam lado a lado com as supostas traições. Afinal de contas, são pequenas ações que destoam do que se espera tanto da rigidez familiar, quanto da estrutura certinha do cinema comercial. 

Capitu e o Capítulo
Foto: Divulgação / Viviane D’Avila

A questão é que as dimensões e as aparições dessas quebras formais aumentam drasticamente com o passar do tempo. Elas são peças centrais, por exemplo, na paranoia gerada pela paternidade e o impacto disso no Bentinho interpretado por Vladimir Brichta

Após o surgimento da dúvida, ele não consegue mais se conter, se manter dentro da rigidez programada dos quadros e passa a percorrer a tela de forma aleatória, criando novos enquadramentos a partir do seu movimento corporal. E aos poucos todos ganham esse mesmo destaque e passam a ser fotografados por ângulos diferentes, com destaque para Brichta e Mariana Ximenes

(Preciso abrir um parênteses para dizer que a figura de Ximenes no papel de Capitu é tão hipnotizante que atrai o olhar até mesmo quando está deformada no espelho).

A interrupção recorrente do formalismo na mise-en-scène do quarteto principal – representada justamente por essa liberdade adquirida pela câmera dentro da casa e do cenário –  abre espaço para que o público enxergue as rachaduras e ironias da aristocracia. 

O próprio cenário de Capitu e o Capítulo, que passa a ideia de casarão do século 19 sem mostrar o lado de fora, vai se transformando e se libertando até se aproximar de uma casa antiga, porém simples, dos anos 2000.

Capitu e o Capítulo
Foto: Divulgação / Viviane D’Avila

As formas que estão em cena também ganham liberdade e passam por um processo de ressignificação digno de Machado de Assis. Escolhas linguísticas e figurinos se desmontam e as máscaras do condicionamento social começam a cair, revelando rostos e sombras deformados pelas mentiras acumuladas. 

Nesse momento, as rupturas modernas já se tornaram tão recorrentes que inverteram o jogo. Agora, é a rigidez que passa a ser a exceção da regra com as inserções formais – cada vez mais esparsas – assumindo o local de estranhamento até a cena pós-créditos de Capitu e o Capítulo promover uma ruptura definitiva ao ritmo da metalinguagem e do samba. 

O resultado é uma belíssima experiência cinematográfica. Mas, acima de tudo, o que permanece é a sensação de Júlio Bressane tem tudo para ser o diretor que melhor capturou e transportou a essência irônica de Machado para as telas do cinema. 


Capitu e o Capítulo já está disponível em cinemas selecionados.    
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