“Além disso, não vale a pena ter uma vida sem liberdade de escolha.” — Alasdair Gray, Pobres Criaturas (1992).
Ah… a vida em sociedade! Como não amar?! Seres racionais complexos e tridimensionais reprimindo instintos e, por vezes, alguns sentimentos em nome do bem comum e do acordo geral de bons modos. Parando para pensar, é meio que assim mesmo que o mundo funciona; fomos condicionados a respeitar uma determinada norma-padrão de se viver em sociedade para que tudo funcionasse da forma que deveria funcionar. A pergunta é: para quem?
Se Yorgos Lanthimos já tinha se mostrado um diretor ímpar no manejo visual dos textos que têm em mãos – seja pelo drama desconcertante de “Dente Canino” (2009); ou a sátira de época em “A Favorita” (2018) -, aqui em seu mais novo filme, “Pobres Criaturas“, o realizador se deleita nas possibilidades surrealistas e alegóricas, numa história adaptada do romance homônimo do escritor britânico Alasdair Gray. O filme teve estreia no Brasil em 1º de fevereiro deste ano, mas já estava arrancando aplausos desde o final de 2023, o que se concretizou nas indicações à 96ª edição do Oscar®, como o segundo filme com mais indicações (onze, ao total), além dos extensos elogios para a atuação da Emma Stone (de “La La Land“, 2017), ao nos apresentar uma personagem tão cheia de nuances.
Como um filme complexo e repleto de interpretações que é, não poderia deixar de trazer essa análise mais que especial. Lembrando que este texto contém spoilers. Recomendo muito que assista ao filme antes de continuar, pois as sensações na sessão são inigualáveis, garanto! Sigamos com o experimento!
UM TALENTO PARA A ESTRANHEZA
Já é de se notar o talento nato de Yorgos Lanthimos em causar aquela sensação de “eeh!“. Mas é muito interessante assumir isto como um artifício muito funcional na caracterização de seus filmes. Vejamos, por exemplo, Gaspar Noé, que se utiliza da repulsa; ou de Lars von Trier, que se apropria do relativismo moral. Lanthimos, por sua vez, trata de temas muito semelhantes, mas de forma mais cômica e/ou poética. Particularmente, em “Poor Things” isso se dá pelo aspecto “fabulesco” da direção da arte e pelos absurdismos à la “Frankenstein“.
O clássico de Mary Shelley, por sinal, é mais presente do que imaginamos. A ideia de brincar de Deus sempre foi algo ousado e, pelo homem, almejado. Não à toa, o personagem de Willem Dafoe é chamado Godwin, e apelidado carinhosamente por Bella como “God” – ou, “Deus“, na tradução do inglês. Mas imaginemos que da mente insana de audaciosa de um cientista, brotasse a ideia, não em fazer do início um novo indivíduo para a sociedade, mas de reanimar um outro, antes morto, a partir de um cérebro infantil.
A jornada da estranheza do espectador não está na premissa alucinante de “Pobres Criaturas“, mas no enfrentamento da própria condição humana. De sair de um indivíduo completamente dependente e involuntário, para alguém consciente de seu corpo e do seu desenvolvimento como pessoa em sociedade. Ao logo desse caminho, porém, os “outros” têm muito a nos dizer. O que fazer e o que não fazer; o que falar e o que não falar; como se portar e como saudar/despedir… Só é estranho aquilo que não é familiar, e o projeto de Lanthimos (bem como o livro base) se desenvolve a partir de um ponto de vista completamente neutro. Uma personagem sem amarras e com uma jornada de autodescoberta e autodomínio muito própria.
Mas eis aqui a grande virada, que muda completamente a percepção do filme: o protagonista desta história é, na verdade, uma mulher.
O SEXISMO, O FEMINISMO E A HISTERIA ENTRARAM NUM BAR…
Gosto de acreditar em duas principais vertentes que regem “Pobres Criaturas“:
- os caminhos do desenvolvimento psicossocial, enquanto se vive num mundo limitante (seja por seu excesso de normas, seja pela falta);
- as particularidades da “liberdade” feminina.
O filme se passa na era Vitoriana, o que por si só já pode dizer muita coisa. Este é um contexto em que o patriarcado exerce muito poder na sociedade, mesmo sendo uma rainha quem assume o trono. Vemos isso no comportamento super protetivo de Godwin em relação à Bella, e a posterior promessa de casamento a Max McCandles (personagem de Ramy Youssef), uma das práticas mais comuns do período. Além desta, o diagnóstico de histeria também era muito comum para mulheres com os comportamentos como o de Bella.
Não à toa, a palavra histeria tem origem grega (vamos fingir que não é uma coincidência, Yorgos), e significa “útero“. Ou seja, ao longo de milênios – registros de Hipócrates, em IV a.C. já adotavam o termo – a “loucura“, ou o desvio de caráter, ou a possessão demoníaca estavam associados, em sua maioria, ao feminino. Mesmo que o diagnóstico já tenha caído em desuso pela psiquiatria, existe uma mácula maior que parece sempre recair sobre as mulheres, seja isto representado em atrasos ao conceder direitos igualitários, atos e expressões sexistas reprisados ao longo dos tempos e restrições dos mais diversos tipos, ocasionados, grande parte, pela errônea dedução.
Veja que não falamos aqui de cenários em que se equipara a predisposição biológica, até porque sabemos que existem diferenças químicas e fisiológicas entre homens e mulheres, cada qual com um sentido muito bem preservado. Nós falamos de sentimentos, ações, vivências e etapas que são universais, por mais particulares que sejam vividas. É neste ponto que “Pobres Criaturas” torna-se provocador e, digamos, polêmico.
MUITA TERRA PARA SER CAVALGADA
“Pobres Criaturas” banha-se em teorias do desenvolvimento humano! Duas, porém, destacam-se mais: a do psicólogo e biólogo Jean Piaget (1896-1980), e a do psicanalista Sigmund Freud (1856-1939). Num primeiro momento, o roteiro de Tony McNamara abraça os ideais de Piaget, introduzindo-nos a uma Bella sem coordenação motora alguma, de vocabulário limitado (“bah… bah… bah!“) e ações espontâneas (como bater na cara do convidado, achando que é assim que se cumprimenta), que, com o tempo e o ganhar de experiências, amadurece até alcançar o desejo pela independência de pensamento e ideais (quando conhece Harry e a Duquesa no navio, e se interessa pela filosofia) e o domínio e conhecimento do próprio corpo. Daqui, temos a virada para a teoria de Freud.
Têm-se discutido muito a nudez e o sexo no cinema, o que muito acontece mais pelo viés do fetiche. Não preciso citar “Cinquenta Tons de Cinza” (2015) ou “365 Dias” (2020) para dizer que, nestas histórias, nada importa a não ser o corpo pelo corpo; o gemido pelo gemido. Em “Pobres Criaturas“, o que acontece é exatamente o oposto; o que o filme quer é justamente nos deixar desconfortável frente à situações como ele se propõe a mostrar para que, com isto, faça-nos pensar sobre o quanto nós ainda não entendemos nada sobre sexualidade. Ao ponto de nos sentirmos incomodados ao ver uma personagem explorando suas possibilidades de prazer.
Mas não… isto não é permitido. Falar sobre sexo, ter muitas relações antes do casamento, satisfazer-se sozinho, não só foi, como ainda é, motivo de culpa, tabu ou pecado. Ainda mais, se levarmos em conta o contexto em que a personagem de Emma Stone está.
Em dado momento, a própria personagem, após um ato sexual com o advogado Duncan, diz:
– Por que as pessoas não fazem só isso o dia todo?
Temos alguém completamente inocente, sem as amarras da chamada polidez, explorando o que é ser ela mesma. Note, porém, que não estamos mais falando de uma Bella com cérebro de bebê. Ela está em constante aprendizado, logo, em constante evolução. Freud vai dizer que a libido estará em uma “fase” a cada momento da vida do desenvolvimento da criança-adolescente-adulto. No filme em análise, vemos melhor a terceira fase, chamada de fálica, nas cenas em que Bella descobre o prazer pela masturbação (na teoria do psicanalista, este momento se daria por entre os 3 e 6 anos).
Após isso, há a fase de latência, que seria uma sublimação dos desejos sexuais para aquisição de conhecimento, que duraria dos 6 anos até a puberdade, aproximadamente (podemos entender isso como o momento em que Bella decide desbravar o mundo e sair de casa, fugindo com Duncan); e em seguida a fase genital, que seria busca de prazer, não em si, mas junto ao outro, que se concretizaria na purberdade.
Para Bella, ser sexualmente ativa não diz nada sobre reputação, bons/maus modos ou o quem se é/pode ser por conta disso. Vejamos sua decisão em deitar-se com outros homens puramente para aquisição de conhecimento! Não existe maldade, segundas intenções aqui. Apenas alguém querendo entender mais sobre si e, principalmente, sobre os outros. Agora… se jogarmos isso para o outro lado da sociedade estampada em “Poor Things“… as coisas são bem diferentes.
O PROBLEMA DO PATRIARCADO
Seria “Pobres Criaturas” uma versão mais deprimida de “Barbie“?
Nos últimos dias, eu não consegui não prestar atenção na internet fazendo comparações de ideologias entre os dois filmes. Gosto de enxergar o filme de Lanthimos, porém, com um olhar mais humano. Muito mais dedicado em desenvolver raciocínios sobre o comportamento e as virtudes/mazelas da sociedade, do que, propriamente, de alguns de seus membros, para, aí sim, lançar suas sementes sobre o que cerne o sexismo.
No capítulo anterior, vimos que o sexo nada mais é do que uma representação de autonomia e autoconhecimento. Mas coloque isso no contexto histórico Vitoriano… e teremos personagens como Duncan e Alfie Blessington. Mesmo na França (um país com currículo revolucionário, deve-se dizer), em que Bella almeja viver sua liberdade junto às moças do bordel da Srta. Swiney, a opressão pela força do homem não passa despercebida. Sempre na tentativa de controlar, domar e proteger a pretendente, não por afeição, mas por sentimento de posse. Ninguém deveria tocá-la, a não ser ele. Ao mínimo sinal de mudança (como quando Bella sugere que as mulheres quem deveriam escolher seus parceiros), o mundo desmorona, e a “invencibilidade” masculina é ameaçada.
O dilema de Bella ao não saber se acompanha tudo o que experienciou ao longo de sua trajetória por tantos lugares; ou se abandona tudo por uma vida passada que não consegue e lembrar, mas que aparenta ter sido infeliz, é extremamente profundo. A cada dia, percebemo-nos perdidos no mundo, e isso não se deve ao fato de não conseguirmos perceber onde estamos; e sim por não nos identificarmos com quem temos que ser.
Fotos que não exprimem nossos verdadeiros sorrisos; jeito de falar e de andar que não corresponde ao que nos é confortável; sentimentos que devemos esconder, pois um determinado grupo de pessoas pode mostrar desprezo, ou violência… acostumamo-nos a fingir seguir normas universais, enquanto adoecemos por dentro, por não seguir as nossas normas próprias. Pobres de nós, criaturas, afinal!
Não nos é revelado, mas, dado o contexto, talvez tenha sido por isto que Bella decidira tirar sua própria vida. A criança, como símbolo da renovação, deu-lhe uma nova oportunidade de viver do jeito certo; do seu jeito. E foi assim que, feliz, reencontrou seu caminho de reconstrução e tomou a grande decisão de ajudar a salvar outras vidas (ou emendá-las, como parecer ser a tradição da família Baxter).
“Pobres Criaturas” é um filme de muitas camadas, engraçado ao seu jeito e extremamente humano. Seria impossível dissecar todos os acontecimentos, cenas, e falas desta obra-prima (particularmente, a considero) sem deixar algo para trás. Deixo minha indicação para que assista em grande tela do cinema e contemple a “onda” que o projeto se mostra ser. A essência humana é simples: viver. E viver de verdade. Da forma que nos faça bem e feliz, ao passo que não fira o outro. Assim, então, estaremos plenos para ver o que de fato na vida é… bela!
P.S.: Um agradecimento especial à Raíssa Sanchez (raa.sanches), também redatora do A Odisseia, pela revisão do texto!
POBRES CRIATURAS JÁ ESTÁ DISPONÍVEL NOS CINEMAS EM TODO O BRASIL.
Sensacional sua análise! Parabéns! Eu assisti o filme e achei suas observações extremamente pertinentes e interessantes! Obrigada por compartilhar!
Muitíssimo obrigado pelo comentário, Anna! Fico feliz que tenha gostado do texto e de ver que o objetivo de trazer alguns questionamentos tenha sido alcançado hehe. Não deixe de conferir outros conteúdos aqui no “A Odisseia”! S2