Exibido na última edição do Festival de Cannes, Retratos Fantasmas é um documentário que retrata as mudanças da cidade a partir do ponto vista apaixonante dos cinemas de rua que se tornaram memórias
Todas as cidades carregam consigo muitas histórias. Histórias boas e ruins que ocupam prédios, avenidas, esquinas e pontes. Histórias que cruzam com pessoas que possuem suas próprias histórias, vividas naquela ou em outra cidade. Histórias marcantes que, com o passar do tempo, podem ter virado memórias, meros fantasmas de um passado glorioso.
Ficou confuso? Vou tentar explicar, mas para isso precisarei dialogar com aspectos pessoais da minha trajetória. Portanto, apesar de saber que muitos críticos podem desaprovar tal atitude, utilizarei a primeira pessoa do singular com frequência nesse texto.
Eu nasci e vivi minha vida inteira em Cariacica, um município próximo da capital do Espírito Santo que só veio a ter um cinema na última década, quando inauguraram o tão esperado shopping da região. Já tínhamos o maior comércio a céu aberto do estado, que incluía pequenos centros comerciais de rua, mas nunca um shopping center com grandes lojas e um cinema para chamar de seu.
Esse cinema, por questões regionais e culturais que não vem ao caso, é um típico cinema de shopping que raramente exibe obras legendadas ou produções menores. Mesmo assim, nos últimos dez anos, acumulei histórias nesse lugar, como ver meu irmão chorar pela primeira vez com um filme na sessão de Vingadores: Ultimato.
No entanto, o novo filme de Kleber Mendonça Filho me fez voltar ainda mais no tempo.
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Viajei para quando assisti ao meu primeiro filme, Tarzan, no Cineteatro Garoto, que recebeu esse nome por causa do patrocínio oferecido pela Chocolates Garoto (para quem não sabe, natural do ES). Com o tempo, o estabelecimento teve outros donos e outros nomes, mas eu lembro de atravessar a porta com a marca da Garoto para mergulhar na animação da Disney mais de uma vez.
Em 2008, este cinema fechou suas portas de vez…
Também lembrei das muitas vezes em que frequentei o antigo cinema do Shopping Vitória – um estabelecimento pequeno em comparação com os cinemas de shopping que conhecemos hoje. Esse pequeno corredor com três salas – que, se não me engano, era administrado pela Severiano Ribeiro – se tornou uma das poucas opções após o fechamento das salas de rua que ficavam no Centro.
Foi ali que cheguei atrasado para a sessão de Hitch e, pra não perder a viagem, meu pai comprou dois ingressos para O Aviador, possibilitando que eu assistisse ao meu primeiro Scorsese com dez anos de idade.
Mas o tempo passou e esse cinema também fechou. Em seu lugar, construíram um gigantesco Cinemark.
Um movimento que aconteceu em vários lugares do estado desde a primeira exibição cinematográfica no Teatro Melpômene, por volta de 1901, influenciado por um projeto de transformação das cidades que inclui o esvaziamento e a posterior decadência dos Centros.
Como o próprio Kleber fala em dado momento do documentário, os eixos de poder mudam para outros bairros e causam a morte desses centros. O que aconteceu em Recife também aconteceu no Centro de Vitória, bairro onde estudei durante o ensino fundamental.
Passei oito anos da minha infância/adolescência em uma escola católica, comandada por freiras, que era praticamente vizinha de um cinema pornô: o icônico Cinerótico. Eu nunca entrei, mas fui testemunha de sua morte progressiva, enquanto via outras pessoas entrarem e construírem memórias particulares com os cinemas de rua do Espírito Santo.
E Retratos Fantasmas é justamente sobre histórias, cidades, cinemas e pessoas. Sobre como os encontros entre as histórias, os cinemas, as cidades e as pessoas se tornam registros, memórias e inspirações, sendo, ao mesmo tempo, combustíveis e agentes transformadores de imagens prontas para serem ressignificadas, de biografias prontas para serem transformadas.
Qual a sinopse de Retratos Fantasmas?
Partindo com micro para o macro, Retratos Fantasmas usa as memórias do diretor e o ponto de vista da janela da casa onde morou por vários anos como ponto de partida para uma análise do desenvolvimento urbano acelerado de Recife e outros focos urbanos.
Para isso, o filme, que está sendo realizado há mais de sete anos, reúne imagens de arquivo, fotografias e registros em movimento que exploram e remontam a história do centro das cidades, a partir das salas de cinema que movimentavam a população e ditavam comportamentos.
Retratos Fantasmas: ressignificando recortes históricos e autobiográficos
Talvez nem todo mundo saiba, mas essa não é a primeira experiência de Kleber Mendonça Filho como documentarista. Antes de O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau, o diretor pernambuco experimentou vários gêneros e estilos em curtas e longas, incluindo alguns documentários que abordavam o cinema e/ou lançavam olhares sobre histórias de Recife.
Os mais conhecidos são Homem de Projeção e Crítico. O primeiro é relembrando e ocupa papel central em Retratos Fantasmas, enquanto o segundo reúne entrevistas realizadas com atores, diretores, produtores e críticos de cinema ao longo de suas passagens por festivais com o intuito de entender os papéis e funções da profissão que este que vos escreve também exerce.
Nesse caso, o próprio Kleber atua como entrevistador e faz algumas interferências pontuais na mise-en-scène. Uma escolha quase oposta à de Retratos Fantasmas, já que ele assume não só o posto de narrador, mas também de protagonista da trama. Afinal, ele é o dono da vida e das memórias que amarram os cinemas, as cidades e as pessoas.
É justamente sobre isso que tratam os três capítulos (divisão recorrente na filmografia dele) desse filme. Não de forma tão clara e independente, uma vez que a obra é inteiramente composta por imagens soltas que passam, de forma proposital, por várias formas, estilos e tipos de cinema. O cinema que é guardião da história oral, o cinema que é registro do passado, o cinema que é resgate histórico, o cinema que é memória… Até mesmo o cinema como porta de entrada para a fantasia entra em cena, ainda que na pior cena do longa.
O que importa é sempre a troca entre essas possibilidades, sejam elas documentais ou ficcionais. O primeiro capítulo, por exemplo, usa a vida de Kleber e a casa onde viveu para falar sobre o cinema como inspiração, mas não uma inspiração simplesmente referencial. É uma inspiração que ganha contornos mais profundos, passando pela convivência com a mãe, pelos sons e imagens produzidos pelo bairro e também pelas mudanças do próprio apartamento.
É a troca que ele cria com cada um desses elementos que ganha papel central na narrativa, assim como a troca entre imagens supostamente soltas dão sentido ao longa. Uma troca que pode ser vista como sinônimo de conexão, de presença; uma troca que depende da pessoa estar ali, presente, vivendo a cidade com todas as suas dimensões, histórias e possibilidades.
Essas pessoas criam imagens particulares que, ao encontrar outras pessoas ou locais, se conectam e ganham novos significados. É por isso que, se precisasse classificar Retratos Fantasmas, não diria que se trata de um filme sobre histórias ou memórias. É muito mais sobre encontros, conexões e, acima de tudo, ressignificações. Sobre como todos os encontros nos transformam e transformam os outros interlocutores.
Retratos Fantasmas e sua relação intrínseca com a arquitetura
Durante os 90 minutos de Retratos Fantasmas, Kleber Mendonça Filho propõe encontros entre a trinca história, cinema e cidade onde cada um deles pode assumir o papel de agente transformador, combustível que alimenta a mudança ou objeto ressignificado.
No entanto, apesar de ter muitas imagens de atores, trechos de filme e um capítulo focado no fazer cinematográfico a partir do cenário que inspirou o realizou, não é o cinema que chama mais atenção. Nas trocas transformadoras entre história, cinema e cidade, quem se destaca é a arquitetura – não por acaso, um elemento que possui papel central no cinema de Kleber Mendonça Filho há muito tempo.
O Som ao Redor estabelece vários diálogos entre os moradores e as mudanças do bairro. Aquarius se passa em um prédio prestes a ser engolido pela evolução da orla de Recife e, querendo ou não, é um retrato poderoso do choque entre presente e passado a partir da cidade. Bacurau é sobre uma cidade que corre o risco de sumir graças às decisões políticas e aos desejos imperialistas.
Esse olhar para a arquitetura em constante mudança chamou minha atenção em todos esses filmes, mas, curiosamente, nunca tinha sido transformada em palavras. Talvez porque nunca havia recebido um tratamento tão palpável ou pessoal quanto aqui, tornando quase impossível falar do filme sem falar de arquitetura. Não com o intuito de explicar as inspirações por trás de O Som ao Redor ou justificar a presença desse elemento nos filmes do diretor, mas sim incluí-las como parte essencial do registro.
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Eu não sou arquiteto e o mais perto que cheguei da área foi em algumas conversas com amigos (muitas vezes motivadas por necessidades domésticas), portanto sinto a obrigação de me ater ao aspecto cinematográfico. Nesse olhar que encara a cidade e sua arquitetura, da renovação à decadência, como um documento imagético; uma representação viva das trocas entre histórias, cinemas e pessoas.
Uma forma quase mágica de eternizar encontros que não são restritos ao Cinema São Luiz ou ao Cineteatro Garoto; às ruas de Recife ou ao centro Vitória, à minha vivência ou às memórias do Kleber.
Por mais que os registros de Retratos Fantasmas estejam ligados a um local específico, as filmagens caseiras, a pesquisa histórica e as aparições sobrenaturais se conectam com tanto amor que ultrapassam as barreiras geográficas, prontas para serem ressignificadas após o encontro com os registros, as memórias e as histórias de outras pessoas e outras cidades.
E o impacto disso na minha experiência foi inspirador e praticamente inexplicável.