Yorgos Lanthimos tem o tipo de filmografia mais ousado que você poderia ver em Hollywood. Isto não se dá só em matéria de excentricidade (Wes Anderson diz “olá“), mas pela forma como aborda questões absurdas de uma maneira tão impropriamente engraçada e, ao mesmo tempo, filosófica. Em seu mais novo projeto, logo após o grande sucesso de “Pobres Criaturas“, em Tipos de Gentileza Lanthimos abraça suas raízes narrativas com histórias insanas que nem os gregos poderiam imaginar em suas comédias, anos antes de Cristo.
“Kinds Of Kindness” é uma antologia formada por três contos: no primeiro, um homem (interpretado por Jesse Plemons, de “Guerra Civil“, 2024) tenta recuperar sua autonomia após anos em uma relação um tanto quanto singular com o seu chefe (interpretado por Willem Dafoe, de “O Farol“, 2019). No segundo, um policial (Plemons) busca se readaptar após a chegada de sua esposa (interpretada por Emma Stone, de “Pobres Criaturas“, 2023) que, até então, estava desaparecida, enquanto lida com suspeitas enlouquecedoras. E no terceiro, seguimos uma mulher devota (Stone), integrante de um grupo religioso contemporâneo, que procura uma mulher com habilidades específicas e místicas, ao passo que precisa resolver questões pessoais em relação ao seu ex-marido (interpretado por Joe Alwyn, de “A Favorita“, 2018).
O retorno da parceria com o roteirista grego Efthymis Filippou, com quem Lanthimos trabalhou em “Dente Canino” (2009), “O Lagosta” (2015) e “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017), resulta em um projeto altamente autoral e estilístico, venerando a forma particular de contar histórias concebida pelo diretor no início de sua carreira. A visceralidade e o absurdismo aplicados a situações tão banais do dia a dia, em contraste com a violência como resultado de uma repressão, tornam-se os alicerces da brincadeira existencial proposta por “Tipos de Gentileza“.
Segundo o Dicionário Michaelis, “gentileza” significa um “ato de delicadeza; de grande distinção“. Em “Kinds Of Kindness“, porém, a concepção do que é ser gentil ganha proporções e interpretações completamente diferentes da usual. Os três contos diferem-se um do outro, mas alguns elementos os conectam, seja dentro do próprio universo narrativo (como os títulos referenciarem uma personagem específica, ou a repetição dos atores, ou até as conexões entre objetos de cena), seja no âmbito da subjeção. E um deles é a intensidade.
Não à toa, as cores do filme são todas voltadas às três primárias (vermelho, amarelo e azul), cada uma de uma intensidade própria e detentoras da naturalidade, por não serem obtidas a partir de nenhuma outra cor. De igual modo, o que é natural ao ser humano (seus instintos, seus hábitos, suas desconfianças, seus sentimentos) também pode assumir uma intensidade, por vezes, perigosa. E é aqui que voltamos aos debates acerca da vivência do homem como indivíduo solitário e como integrante de uma sociedade, de um ponto de vista sórdido à la o visto em “Kynodontas“.
O olhar marcado pela catastrofização fabulesca de Yorgos Lanthimos se debruça sobre os limites (ou a falta deles) do homem quando está numa relação de interesse com o outro, que resulta numa “gentileza desequilibrada“. Seja isso se mantendo dentro de uma relação abusiva por medo do retorno à vida comum; ou numa relação conjugal em que qualquer coisa é feita e ofertada pelo e para o parceiro; ou até quando se doa a vida por uma busca implacável, deixando para trás passado, costumes e família.
A câmera usa e abusa de primeiríssimos planos e planos detalhe (imagens extremamente próximas das personagens ou objetos) com os objetivos, ora de trazer o espectador para dentro daquele universo insano, ora para evidenciar o caráter invasivo da narrativa. As atuações são primorosas, com destaque para Jesse Plemons que exalta perspicácia na execução de cena de seus protagonistas, mesmo que seu estilo de construção de atuação seja sutil.
Praticamente todos os atores reprisam novos personagens a cada segmento, com exceção de Hunter Schafer (de “Euphoria”, 2019-TBA) , que faz uma curta aparição no terceiro conto. No mais, Emma Stone, Margaret Qualley (de “Era Uma Vez em… Hollywood”, 2019) Willem Dafoe, Hong Chau (de “A Baleia“, 2022), Mamoudou Athie (de “Elementos“, 2023) e Joe Alwyn retornam como protagonistas ou coadjuvantes diferentes do interpretado anteriormente, numa estratégica de unificação do núcleo da narrativa, ao mesmo tempo que dá uma personalidade ao gênero adotado, no caso a antologia.
As decisões estilísticas em “Tipo de Gentileza“, porém, não conseguem suprir o pouco ritmo nos contos. Lanthimos possui um talento para a esquisitisse aplicada às mais criativas comédias gregas, mas perde a mão em seu novo projeto ao despender tempo demais venerando a autorreferência. E, ao alongar os arcos de cada segmento, mais os elementos pedem detalhes, o que acaba por não acontecer (por razões de tempo útil de filme) trazendo uma breve sensação de incompletude ao fim de cada “episódio” que, a princípio, deveria promover uma reflexão.
No entanto, a maior parte do longa funciona muito bem, ao mesclar os elementos clássicos das metáforas sociais pérfidas da dupla roteirista ao humor bárbaro e ridículo. Em alguns contos essas características são mais fortes do que nos outros (o primeiro, por exemplo, custa engatar até apresentar a proposta do projeto), mas nada que cause desespero. Enquanto Yorgos Lanthimos não ser vencido pelo cavalo de Tróia da “repetição” (que já carimbou muitos realizadores e produtoras hoje em Hollywood), suas peripécias ainda serão memoráveis!
“TIPOS DE GENTILEZA” JÁ ESTÁ DISPONÍVEL EM (QUASE) TODOS OS CINEMAS DO BRASIL