ROTEIRO AO AVESSO | A consciência como O FAROL do homem mítico e solitário

Depois de fazer um alvoroço com “A Bruxa” (2015), Robert Eggers volta num acordo com a controversa produtora A24 no comando de mais um filme repleto de alegorias e profundidade. De uma forma mais sutil, o diretor americano consegue perturbar seu espectador, transformando “O Farol” (2019) em um pesadelo niilista, mitológico e, ao mesmo tempo, magnífico.

Você pode conferir a crítica completa e sem spoilers de “O Farolaqui. Recomendo, veementemente, assistir ao filme antes de continuar lendo este artigo, para que a experiência imersiva e única do projeto não seja afetada.  Agora, se você já assistiu e, assim como eu, já está se questionando há dias sobre as metáforas pintadas por Eggers, suba à bordo e vamos desvendar os significados mais profundos desta preciosidade caótica da cinematografia.

O farol
Foto: Reprodução.

NO INSÓLITO MAR DA SOLIDÃO

É inegável o viés mitológico de “O Farol”. A fotografia sem vida, a ambientação mórbida e o alegorismo tomam conta da ilha e, aos poucos, também dos solitários faroleiros. Em contrapartida, não se pode ofuscar a humanidade que lá permeia, principalmente (e quase que exclusivamente) no personagem de Robert Pattinson, Ephraim, um jovem de poucas esperanças, e recém-chegado companheiro do veterano Thomas (vivido por Willem Dafoe).

O que perturba, tendo em vista todo esse cenário, é a gradativa perda da consciência, fruto da solidão enlouquecedora da ilha. Nada poderia ser mais humano do que a sua capacidade de ser racional. Porém, “O Farol” flerta com as consequências do isolamento, da falta de interação e do que o homem é capaz de fazer para conseguir voltar à sanidade.

Dentro dessas interpretações, destacam-se dois pensamentos do filósofo grego Aristóteles: a capacidade social do ser humano e a a dualidade bestial/divinal na falta dessa interação.

É evidente que o homem, muito mais que a abelha ou outro animal gregário é um animal social.

Se tem algo que a pandemia nos elucidou foi tal linha de pensamento. Foi crescente o número de pessoas que desenvolveram depressão e ansiedade no período da quarentena. Tudo isso, pode-se dizer, que foi fruto, direto ou indireto, da falta de interação. E é quando Robert Eggers surge para pintar seu retrato monocromático. “O Farol” é uma espiral de sensações pautadas na insanidade de dois homens afundando no mar da solitude, esta que, aos poucos, vai perdendo seu caráter construtivo e se tornando o alicerce da própria degradação destes.

As visões de Ephraim com a sereia, por mais míticas que sejam, refletem, também, a vontade de satisfazer seus desejos humanos, aqui representados pela pulsão sexual, mas que vai o aproximando, cada vez mais, do que Aristóteles diz sobre a animalização, quando o homem se vê só. Inóspito de si mesmo.

O farol
Foto: Reprodução.

DOIS FEIXES DE UM MESMO RAIO DE LUZ

A segunda linha de pensamento proposta por Aristóteles, afirma do caráter do homem quando este se encontra nulo de relações sociais.

O homem solitário é uma besta ou um deus.

Interessante notar como não é uma frase de dúvida, mas sim, de afirmação. Num extremo da solidão humana, temos a bestialidade, fato comprovado com a paciente perda da sanidade dos protagonistas enquanto se veem encarregados do cuidado do farol da ilha. Uma das cenas mais memoráveis, é quando o faroleiro de Robert Pattinson faz do veterano seu “cachorro”, em seu sentimento momentâneo de superioridade, numa tentativa desequilibrada de revidar os maus tratos sofridos pelo abuso de “poder” que o velho faroleiro exercia sobre ele.

Em outro extremo, percebe-se a potencialidade divina do homem, e é aqui que “O Farol” muda para sua vertente alegórica, passando de algo puramente natural para uma abordagem que vai além da compreensão consciente.

Pode-se, assim, facilmente encarar Thomas e Ephraim como dois lados complementares e necessários um para o outro. Ao passo que se diferem em determinadas características, por causa disto complementam-se, por mais que Thomas ainda exerça um papel superior ao do jovem, enfatizado não só por sua experiência como faroleiro, mas seu teor mítico.

Finalmente podemos ver, então, a face de Thomas como uma personificação de Proteu, uma deidade marinha da mitologia grega, esta, diga-se de passagem, que rege grande parte do pensamento de Eggers para seu projeto. Assim como Proteu tinha por função guardar o rebanho de seu pai, Poseidon, Thomas se vê como o sumo encarregado de cuidar da ilha. Um exemplo simples de tal contraste homem-deus, é quando o veterano faroleiro alerta o jovem sobre maltratar as aves da ilha, como sinal de afronta e chamado para maldições. Por um lado, brilha o feixe da superstição, por outro, o da mitologia.

Já o personagem de Pattinson, reencarna a figura de Prometeu, deus do fogo e o que, segundo o mito, foi responsável por entregar o fogo do Olimpo aos mortais, símbolo este da supremacia, do conhecimento. E a partir daqui, tendo em vista a caracterização de cada personagem em tela, Robert Eggers não hesita em dar também ao farol (edifícil) sua própria alegoria: a consciência.

Com tais referências em mente, tudo se torna complementar e indispensável entre os elementos da ilha mítica rodeada pelo mar da falta de razão. E é com maestria que, a partir da metade do segundo ato, “O Farol” se mostra profundamente bizarro e, ao mesmo tempo, lúcido.

O farol
Foto: Reprodução.
O ETERNO CASTIGO Do SER CONSCIENTE

Percebendo que sua fonte de sanidade está se esgotando, Ephraim questiona-se por todo tempo, o que de tão majestoso pode habitar no topo do farol. Willem Dafoe é estupendo quando encarna um homem-deus enfurecido só em pensar na inclinação do jovem à imprópria curiosidade. O protetor guarda, a todo custo, o tesouro; e o propagador tenta, a todo custo, descobrir e alcançar a verdade.

O grande questionamento é: a humanidade está preparada para encarar a verdade? É neste ponto que a ideia criacionista faz contato com o enredo metafórico de “O Farol”.

Oh, não! – tornou a serpente – vós não morrereis! Mas Deus bem sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal.

Gênesis III, 4-5

Segundo o Cristianismo, após comerem do fruto proibido, Adão e Eva foram expulsos do paraíso. O grande primeiro pecado que condenou a humanidade pelo restante de seus dias foi o do orgulho, a ânsia pelo conhecimento de tudo, o que só Deus deveria o ter.

Para os gregos, isso não é tão diferente. Quando Zeus soube que Prometeu roubara o fogo do Olimpo (conhecimento) para dar aos humanos, enfureceu-se e o acorrentou no alto de uma colina para que tivesse seu fígado bicado por abutres por toda a eternidade. Assim também se encerra o arco do jovem Ephraim, largado aos pelicanos à beira do mar da ilha do farol.

Quando, finalmente, consegue contemplar a “luz” do farol, extasiado, não consegue se conter, e aniquila-se a si mesmo, pela própria consciência. Seu desequilíbrio, consequência de uma avassaladora e inquietante solidão, não o faz capaz de lidar com tamanha carga de conhecimento. Conclui-se, dessa forma, que esta pode ser tanto motivo de glória, quanto de ruína humana.

Se no Cristianismo, os homens carregam a culpa original, o desejo de serem como Deus, detentores de toda a verdade e conhecimento, degradando uns aos outros, década após década, século após século, em nome de sua doutrina própria e inegável; Zeus dá aos mortais Pandora, símbolo eterno da autodestruição pela curiosidade e castigo, ao não saberem lidar com o tesouro da mente consciente.

O farol
Foto: Reprodução.

De tudo somos capazes, pois somos seres conscientes e sãos. Porém, precisamos nos ater em valores e buscar ações saudáveis, ao ponto de evitarmos a recusa de nós mesmos, sendo nossos próprios abutres no insólito penhasco da douta ignorância.


O farol está disponível no catálogo do Telecine play

INsta


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