ROTEIRO AO AVESSO | O psicológico fanático em SAINT MAUD

O cinema está sempre tentando nos fazer ver o mundo de outra forma. Por vezes, ele mostra a sociedade tal como ela é, mas ficamos perplexos, nos fingimos de besta e ignoramos os fatos, taxando um filme como “chato”, “difícil de entender” e/ou “sem credibilidade”, quando, porém, sua essência traz algo mais profundo e que merece ser contemplado. Afinal, o cinema é uma arte. E toda arte merece ter vez e valor.

“Saint Maud” estreou de forma tímida, mesmo com a grande publicidade em torno da produtora A24, que tem lá sua ótima reputação. Da diretora estreante Rose Glass“Saint Maud” apresenta a vida da enfermeira recém-convertida ao catolicismo, Maud, que foi designada para cuidar de uma ex-bailarina portadora de uma doença terminal. O que deveria se tornar uma jornada de cuidado, torna-se um pesadelo infernal (adoro trocadilhos), quando Maud se entende convocada por Deus a salvar a alma de sua paciente.

Diferentemente da maioria das críticas cinematográficas, o tal Roteiro ao Avesso do título quer ir muito além do técnico e do visual, da coerência narrativa e da continuidade; ele é uma exploração, no mundo de significados que o filme proporciona. E nada como um belo filme de terror para estrear.

E sim! Esse texto contém spoilers. Então, caso ainda não tenha assistido ao filme, fica o alerta! “Amém“?

Saint Maud
Foto: Reprodução.

entre o fanatismo e a patologia

Não é novidade que a religião sempre foi base para tramas polêmicas dentro do mundo cinematográfico. E, em “Saint Maud”, ela não é somente base, mas, também, alvo de críticas, o que torna tudo ainda mais desconfortável para os cristãos.

Porém, algo não pode ser negado: existe uma linha muito tênue entre fanatismo religioso patologia, e é justamente isso que “Saint Maud” quer contar. O que é realmente engajamento cristão e o que está extrapolando os limites da humanidade.

O fanatismo não só desvia dos reais valores religiosos, como traz atrozes consequências ao próprio indivíduo. Vejamos Maud (Morfydd Clark), por exemplo. Quando não superou de forma saudável o acidente do passado que a envolvia, procurou, por si só, amparo na religião, e, por consequência, apegou-se demasiadamente aos rigorismos e a interpretações extremas.

Isso a colocou presa num mundo criado por ela mesma, em que existiam verdades únicas e que não poderiam ser contestadas e/ou violadas (nada parecido com o que vivemos hoje, não é? – contém ironia).

O ponto oposto é dado com a presença de Amanda (Jennifer Ehle), munida da figura da bailarina: o corpo, a sensualidade, o feminino, o ousado. Tudo isso é atenuado quando a sexualidade entra em jogo, colocando Amanda como aquela que não se decide entre o homem ou a mulher, entre o que é natural e o que é contra a natureza.

Esse é o gatilho para o abalo do mundo construído por Maud, e que se torna o motivo pela qual surja a obsessão pela salvação. A enfermeira não consegue distinguir entre o que realmente é uma instrução divina e o que é a sua própria vontade. Ou até mesmo o que seria a voz de Deus e uma ilusão psíquica.

É interessante como Rose Glass decide mostrar os momentos em que Maud sente Ele falar: quase como se fosse um orgasmo. Mais um sinal da eroticidade, do que é mais humano que divino. Isso é redito no terceiro ato, quando a personagem Amanda diz ter forjado tal sentimento para, apenas, aproximar-se de sua “pequena salvadora“. Os redemoinhos de água que precedem as sensações são mais um sinal da confusão mental, do descontrole emocional, de que algo maior está sob controle.

A grande pergunta é: o quê?

Saint Maud
Foto: Reprodução.
O CAMINHO DA SANTIFICAÇÃO

Tendo plena confiança de sua missão santificadora de salvar uma “alma afundada em trevas“, Maud abre mão de sua humanidade. Isso é confirmado com a cena dos alfinetes nas palmilhas. Tudo é levado ao extremo, até mesmo a dor. A partir daí, tendo isso apresentado, o filme se atém sobre os questionamentos; o que “pode ser” e o que “pode não ser”, afinal, a barreira sensível foi quebrada. Logo, tudo é possível.

E torna-se mais forte a dúvida: “será que isso realmente vem de Deus?“. É nesse momento, ao meu ver, que está o cerne de “Saint Maud”. Algo que vem de Deus, deveria vir com amor, consideração, respeito, humanidade, acolhimento… ora, se isso não acontece, é grande a chance de haver um grave desequilíbrio, em que uma só das partes é beneficiada.

O que Maud almejava, era o reconhecimento por ter salvo alguém, o júbilo, um deleite próprio. Tudo era centrado em si. E não pense que pensou errado: ela realmente estava crescendo para si mesma, estruturada no orgulho.

Na tradição cristã, Lúcifer (não é o do Tom Ellis) é considerado o anjo que caiu pelo orgulho. E assim como ele, Maud também cai. Em determinado momento do filme, a enfermeira dialoga com o “crucifixo”, num mise-en-scène que remete muito ao trecho final de “A Bruxa” (2015), sugerindo fortemente uma ligação pra lá de profana.

O fanatismo, a ânsia pelo reconhecimento, faz Maud enxergar Deus onde Ele não está. E por falar em enxergar, o detalhe da heterocromia do terceiro ato foi o último “pingo do i” para concluirmos que “algo de errado não está certo”. Bem no estilo “A Maldição da Mansão Bly” (2020). Essa e mais outras cenas, são provas de que a sutilidade carrega um grande peso de interpretação.

Maud quer trilhar um caminho de santificação. Contudo, ela quer que seu caminho seja visto, seja testemunhado. Seja reconhecido.

Saint Maud
Foto: Reprodução.
a consumação de um desequilíbrio

Por dar tanta credibilidade a uma “voz redentora”, estar cega pelos próprios desejos e transtornada por seus fanatismos, Maud comente o mesmo erro de seu passado, quando deixa seu lado desequilibrado tomar conta da situação, isso tudo após um embate delirante (no sentido literal da palavra).

E, numa chocante cena final, Maud consuma sua missão, mostrando a todos para que veio ao mundo, segundo o que ela mesma acreditava. Ela queria ser a próxima santa da Igreja por tanto ter sofrido por alguém; por ser rigorosamente devota; pura de pensamentos e ações. Porém, não conseguiu lidar com os próprios demônios, e seu orgulho inflamado tornou-se um ardor real.

Estamos cercados por pessoas de grande ego religioso, pautado num extremo fundamentalismo, que preocupam-se em importunar os próximos e propagar uma mensagem corrosiva e danosa, tanto humanamente quanto psicologicamente, quando, porém, deveriam espalhar o amor e a alegria.

Saint Maud” faz-nos perguntar a nós mesmos se a fonte da nossa crença, independente qual for, é realmente sadia ao ponto de reconhecer nosso valor como um ser dotado de qualidade e defeitos, de reconhecer nossas falhas e limitações, ou se cobra, incessantemente, uma santidade banhada nos rios da insanidade e da incompreensão do que é ser humano.


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2 comments
  1. Excelentes observações, senti-me dentro do filme, degustando cada momento de tensão, insanidade e loucuras.
    De fato essa crítica do filme diz muito sobre a realidade de uma forma mais extrema, que muitos ignoram, a razão e a sanidade deixadas de lado às custas de uma “santidade” insana.
    Nem posso esperar para assistir.
    Belo trabalho!

  2. Excelentes observações, senti-me dentro do filme, degustando cada momento de tensão, insanidade e loucuras.
    Nem posso esperar para assistir.
    Belo trabalho!

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