O tempo é IRREVERSÍVEL | ROTEIRO AO AVESSO

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Le temps détruit tout.

É nesse pensamento que o polêmico Gaspar Noé pauta sua obra, considerada uma das mais incômodas do cinema. “Irreversível” é um filme de 2002, estrelado por Monica Bellucci, Vincent Cassel e Albert Dupontel. Na trama, contada de trás para frente (num estilo que lembra muito “Memento”, de Nolan), acompanhamos a busca implacável de Marcus (Cassel) pelo agressor de sua namorada, Alex (Bellucci). Porém, os limites da racionalidade são quebrados e, de espectadores, tornamo-nos testemunhas de crimes impossíveis de serem “desvistos”.

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Foto: Reprodução.

olho por olho

Irreversível” é um filme forte. O modo como Gaspar Noé conduz as sequências deixa qualquer espectador zonzo e desconfortável. Mas é no meio da angústia, da confusão, do gore, que extraímos uma profunda reflexão acerca do tempo e da vingança.

Um dos filósofos gregos mais influentes do período helenístico, Epicuro de Samos, apresenta um pensamento consoante, justamente, ao do filme francês:

A justiça é a vingança do homem em sociedade, como a vingança é a justiça do homem em estado selvagem.

Quase que o tempo todo há comparações das personagens com o reino animal, este, símbolo da falta do raciocínio comum. O próprio amigo de Marcus, Pierre, exclama num dos momentos: “Já não é um homem, és um animal. Nem os animais se vingam“, partindo do pensamento que os seres irracionais não possuem senso de justiça social (apesar de algumas pesquisas sugerirem o contrário). Mas concentrando-nos na imagem que os dois cenários trazem, fica evidente o quão longe Marcus se permite ir quando cede ao seu primitivismo.

Aliás, tudo em “Irreversível” torna-se símbolo da submissão do homem ao instinto selvagem. O próprio ato da vingança (na fortíssima cena do extintor) é consumado dentro de um bordel homossexual, marcado pelo fetiche, masoquismo, prazer e tudo que envolve a realização do Id, do desejo, do que é mais primitivo do homem.

Mas tudo isso com qual objetivo, afinal? Será que o acontecido que feriu a Marcos fora grave o suficiente para justificar tamanho crime?

É então que somos introduzidos à famosa e indigerível cena do estupro. Depois de brigar com o namorado numa festa, Alex decide ir para casa sozinha e acaba cortando caminho por um túnel de metrô. Lá, presencia a agressão de um homem a uma travesti. Perplexa e sem conseguir saber se foge ou se impede, acaba por despertar interesse no rapaz, que se aproveita, da forma que bem entende, de Alex. Em todos os sentidos.

A partir desse momento, “Irreversível” torna-se uma balança moral para o espectador: nesse cenário, fora justo o “olho por olho“? Não seria o tempo capaz de destruir qualquer sentimento de ira e sede desenfreada por justiça a todo custo, e trazer a superação? Ou o perdão é fora de cogitação?

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Foto: Reprodução.

Um pesadelo feminino e psicanalítico

Existe um ar de libido que passeia pelos claustrofóbicos cenários de “Irreversível“. Gaspar Noé insiste em colocar em todo quanto é tipo de canto alguma representação do sexo. Ele acrescenta ainda, um toque vermelho na fotografia, indicando, não apenas, o calor que corre pelas veias das personagens, mas o inferno erótico que, pouco a pouco, elas vão se aproximando. Tudo isso para depois, justamente, converter o sexo em algo completamente desagradável e marcante.

O pai da psicanálise, Sigmund Freud, aliava grande parte dos problemas humanos à continência da pulsão, em resumo de seus estudos sobre a mentalidade sexual.

É quase impossível conciliar as exigências do instinto sexual com as da civilização.

O filme francês adota a ideia de que o sexo e tudo que o envolve é ligado a liberdades que a civilização seria incapaz de conceber. A atividade mais primitiva do ser humana é posta em cheque, sendo vítima e vilã de uma realidade perturbadora.

Tudo isso, ao passo em que a subordinação da mulher é evidenciada no decorrer do filme, principalmente com a sequência da festa, em que Marcus se envolve e se insinua a outras mulheres, enquanto Pierre tenta o “acordar” para a sorte que tem em namorar Alex.

O personagem de Dupontel, funciona como o Ego, segundo a teoria psicanalítica da mente, apresentando uma realidade que o Id não quer ver. Não é à toa que fica tachado como “velho” e que “não soube aproveitar a vida“. Marcus quer, apenas, curtir os momentos, aproveitar de sua boa fama sexual. A inteligência da direção está em como essa mesma ideia sexual é invertida e usada como arma para ferir o personagem de Vincent Cassel, que assume, de uma vez por todas, seus impulsos em busca de um sacrifício equivalente.

A submissão da mulher que, antes, era banalizada, torna-se, agora, motor à base de sangue de um carro desenfreado. São esses contrastes de ideias que fazem de “Irreversível” uma obra de muitos sentimentos.

A própria personagem de Monica Bellucci sofre um subversão. Ao longo do terceiro ato (que, narrativamente, seria o primeiro), ela se torna a protagonista, mostrando que era uma mulher de ideais e desejos, que buscava sua felicidade e a do namorado. O peso se torna ainda maior quando ela se descobre grávida, alterando ainda mais a intensidade do que já foi visto.

É como se o tempo brincasse com nossa percepção. Como se tudo o que as personagens fizessem, por mais racionais ou irracionais que chegassem a ser os atos, fosse um grande truque. E na verdade o é, quando percebemos o quanto poderia ter sido evitado se fosse feito diferente. Mas nós, espectadores, estávamos em desvantagem: o tempo estava correndo para trás.

Irreversível
Foto: Reprodução.

Um Experimento com O Tempo

A última cena de “Irreversível” é muito útil para a compreensão de um todo. Nela, Alex está num parque, como se estivesse num piquenique, e lendo um livro. A princípio, não parece nada de muito relevante, até notarmos qual o título da obra. “Um Experimento Com O Tempo” é um livro científico do engenheiro aeronáutico J. W. Dunne, que aborda conceitos e estudos acerca da precognição, ou seja, a capacidade de premonição por meio de sonhos e experiências alternativas com o tempo.

Em síntese, Dunne propõe que passado, presente e futuro pertencem a um único plano, mas nós, enquanto humanos, e com nossa limitação cognitiva, só conseguimos ter acesso consciente a um desses tempos: o presente. Mas tudo acontece simultaneamente. Somente quando estamos num estado mais “aberto” da consciência, como quando dormimos, que podemos ter um vislumbre dos outros tempos, uma vez que decorrem numa mesma linha.

Aplicando a ideia do engenheiro ao filme, podemos ver como muitos aspectos coincidem com a teoria de Dunne. A própria Alex afirmou ter tido um sonho em que estava num túnel e ele se partia ao meio, atestando sua capacidade em prever um acontecimento que dividiria sua vida para sempre.

Tudo poderia ter sido realmente diferente. Alex poderia não ter conhecido Marcus, que consequentemente não teria que ir naquela festa, para voltar pelo túnel, ser abusada e espancada, e servir de gatilho para um assassinato.

Ou então, Alex poderia ter conhecido Marcus, mas se envolvido com Pierre, que na noite da festa teria a levado para casa, e assim, não precisaria ter passado pelo que passou.

Existem muitas possibilidades para o que poderia ou não ter acontecido, como as ideias poderiam ter sido diferentes, mas o tempo transcorre de uma única maneira. Ele não é o vilão, nem o mocinho. Ele é o tempo. Ele faz o que deve fazer, que é se gastar. Somos nós quem nos deixamos devorar por ele e não assumimos a culpa.

Não gostamos de nos sentir culpados, de carregar um peso. Mas cometemos erros evitáveis; por vezes, arrependemo-nos, mas blasfemamos dizendo que não tinha como ser diferente. Só então, tentamos ser diferentes, correndo atrás de um prejuízo que poderia não ter acontecido.

Mas o tempo não poupa ninguém. Talvez, ele seja realmente o único irreversível.


Atualmente, Irreversível está disponível nos catálogos da Globoplay e do Telecine

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