Dramédia francesa dirigida por Rebecca Zlotowski, Os Filhos dos Outros encara os relacionamentos maternais – sejam eles de sangue ou não – com a honestidade que o tema merece
Un pas, une pierre, un chemin qui chemine,
Un reste de racine, c’est un peu solitaire,
C’est un éclat de verre, c’est la vie, le soleil,
C’est la mort, le sommeil, c’est un piège entr’ouvert.
Un arbre millénaire, un noeud dans le bois,
C’est un chien qui aboie, c’est un oiseau dans l’air,
C’est un tronc qui pourrit, c’est la neige qui fond,
Le mystère profond, la promesse de vie.
C’est le souffle du vent au sommet des collines,
C’est une vieille ruine, le vide, le néant,
C’est la pluie qui jacasse, c’est l’averse qui verse
Des torrents d’allégresse, ce sont les eaux de mars.
Esse é o trecho de uma das canções brasileiras mais conhecidas, divulgadas e regravadas no território nacional e internacional. A versão francesa descrita acima tem papel importante no epílogo de Os Filhos dos Outros, funcionando como uma amarração simbólica para a passagem da vida em meio a acontecimentos – grandes ou pequenos – que nos marcam.
Não sei se a “culpa” é da amplitude de significados e interpretações que podem ser extraídas das rimas alegóricas ou da universalidade das reflexões sobre vida, morte e renovação que surgem por meio das conexões imagéticas entre palavras tão diferentes. O fato é que Águas de Março é uma obra-prima quando se trata de falar sobre os lados bons e ruins dessa aventura que é viver entre seres humanos.
Não por acaso, eu já destaquei sua presença em outro filme que também encara a vida e as escolhas que a compõem de maneira franca e honesta: o norueguês A Pior Pessoa do Mundo, de Joachim Trier. Vou tentar não comparar os filmes, mas, apesar das versões em idiomas diferentes, a canção de Tom Jobim parece ter sido feita sob encomenda para ambos.
Afinal de contas, tudo se resume a encarar a vida de frente. Compreender que estaremos sempre conectados por meio de paixões, decepções, alegrias, tristezas, aproximações e afastamentos. Aprender que, independentemente das consequências das tempestades, precisamos continuar vivendo da maneira que nós (e apenas nós) acreditamos ser correta.
A história de Os Filhos dos Outros
Os Filhos dos Outros acompanha a história de Rachel Friedmann, uma professora de 40 anos que nunca teve filhos. Porém, o que parecia ser uma escolha aparentemente sólida ganha outros contornos quando ela se aproxima de Leila, a filha de quatro anos do seu namorado.
No entanto, como a vida nunca é um morango, ela precisa encarar essa possível mudança de perspectiva em meio a traumas, traições, indecisões e partidas.
O que achamos de Os Filhos dos Outros?
Eu admiro filmes que conseguem falar de um jeito honesto e sem tantos rodeios sobre a vida, trazendo à tona discussões que muitas vezes são deixadas de lado ou simplesmente citadas para cumprir tabela. No caso de Os Filhos dos Outros, o foco está na construção dos relacionamentos amorosos e maternais de uma mulher divorciada que decidiu não ser mãe.
Sozinhas, essas três últimas palavras já tocam em um tabu da nossa sociedade. Porém, o ponto alto do filme está na relação de Rachel com a filha de seu novo namorado, possibilitando que enxerguemos o impacto dos relacionamentos por outro ângulo.
É permitido criar laços afetivos e até mesmo se ver como mãe de uma criança que não é sua filha de sangue? E como essa criança vai se sentir, caso esse relacionamento não seja um “felizes para sempre”?
Esse é o ponto de partida para o trabalho aparentemente mais pessoal de Rebecca Zlotowski (A Prima Sofia). Uma sugestão que se encaixa tanto na escrita do roteiro quanto na condução da encenação naturalista, que parece enxergar a protagonista como uma espécie de alter ego que transporta para tela sentimentos que nasceram a partir de experiências compartilhadas pela diretora.
A relação empática entre vivências pessoais e ficção contribui justamente para essa construção franca das discussões. Algumas coisas são romantizadas e tratadas com um bom humor que faz bem para o longa, mas os questionamentos que ocupam a mente de Rachel (ao lado de traumas, arrependimentos e escolhas empáticas) surgem sem papas na língua.
Talvez por isso seja tão fácil se conectar a personagem e torcer por um futuro cercado por paz e felicidade. Talvez por isso seja quase impossível não mergulhar junto com ela no relacionamento com Ali, sentindo cada rejeição e comemorando cada sorriso.
Tudo graças à honestidade e à atuação incrível de Virginie Efira (conhecida por Benedetta e vencedora da categoria de Melhor Atriz por esse papel na última edição do Lumière Awards). Precisamos ser tão honestos quanto o longa e afirmar com todas as palavras que ela é o grande trunfo de Os Filhos dos Outros.
E não poderia ser diferente, visto que ela está carregando uma parte de Rebecca Zlotowski consigo. É natural em produções com tamanha projeção de sentimentos que a câmera esteja sempre próxima da protagonista, capturando cada expressão ou sensação. Efira entende isso e corresponde, passeando pelas nuances de Rachel com muita facilidade e potência emocional.
Quando ela está vivenciando o dia a dia com Ali (Roschdy Zem), o amor fica evidente. Quando eles estão na cama, o tesão ultrapassa a tela. Quando o foco está na família ou no relacionamento com a pequena Leila (Callie Ferreira-Goncalves), o carinho materno chega perto de transbordar. Até os momentos ambientados na escola, principalmente com Dylan, existe um senso de cuidado que se aproxima do maternalismo, apesar do aluno nutrir outros tipos de sentimento.
Não é à toa que o epílogo de Os Filhos dos Outros decide focar justamente nessa história. Menos para amarrar pontas ou tentar se aprofundar em uma subtrama razoavelmente rasa; mais para trazer à tona a forma como Rachel estende o desejo de ser mãe – reprimido por conta dos traumas – para os filhos dos outros, dividindo espaço com sua própria feminilidade.
E falando em traumas, esse é o ponto que mais me incomoda no longa. Eu sinto que eles surgem como revelações esporádicas, calculadas para vir à tona quando o filme necessita de fôlego para atravessar construções dramáticas entrecortadas por fade outs pouco significativos. A sorte é que Virginie Efira vai bem até mesmo quando o texto e direção se desequilibram nas emoções, permitindo que seu olhar conduza, por exemplo, uma belíssima sequência de despedida simbólica no parque.
Por outro lado, fica a sensação de que o longa perde força justamente no terço final. No momento em que as emoções pareciam ganhar contornos mais agridoces e os simbolismos se direcionavam para conexões imagéticas mais potentes.
Isso faz com que seja completamente injusto comparar Os Filhos dos Outros e A Pior Pessoa do Mundo (possivelmente um dos melhores filmes da década). No entanto, o registro pessoal e empático de Rebecca Zlotowski e Virginie Efira tem potencial para funcionar como uma boa sessão dupla sobre mulheres que escolhem viver com toda a potência de suas emoções – sejam elas deliciosas ou amargas.