Em Jardim dos Desejos, Paul Schrader e Joel Edgerton se unem no meticuloso universo da jardinagem para explorar relacionamentos improváveis em meio a fugas do passado.
Um dos artistas que ajudou a moldar o movimento da Nova Hollywood nos anos 70, Paul Schrader é o responsável pelos roteiros de filmes como Taxi Driver, Yakuza e Touro Indomável. Ao mesmo tempo, ele também construiu uma trajetória influente como diretor, sendo o responsável por obras como Gigolô Americano, A Marca da Pantera e Mishima: Uma Vida em Quatro Tempos.
No entanto, quem olhar a ficha do diretor/roteirista no IMDB verá que sua carreira é esporádica, marcada por lapsos de 5 ou 6 anos em que Schrader não produziu nada. Uma realidade que me faz agradecer pelos tempos atuais, uma vez que temos a sorte de viver em um período bastante prolífico de sua filmografia.
Inclusive, Jardim dos Desejos é a conclusão de uma trilogia – que não foi inicialmente pensada dessa forma – composta pelo ótimo Fé Corrompida (indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original e vencedor do Independent Spirit Award de Melhor Ator para Ethan Hawke) e por O Contador de Cartas. Dois dos muitos presentes que temos recebidos desse artista que, para completar, também se mantém ativo no Facebook com ótimas reflexões sobre a indústria.
Não por acaso, nos três filmes citados, Schrader continua fazendo o que já provou que faz de melhor: estudar personagens solitários e questionáveis que, apesar dos seus posicionamentos, continuam habitando nosso mundo. Ele os posiciona em universos dolorosamente reais, cercados por um formalismo rigoroso, para explorar a necessidade de fugir do passado, se escondendo atrás do trabalho cotidiano enquanto busca por redenção (ou não…).
Qual é a história de Jardim dos Desejos?
Narvel Roth (Joel Edgerton) é o meticuloso horticultor dos Jardins Gracewood, sendo tão dedicado em cuidar dos terrenos desta bela e histórica propriedade quanto em agradar sua empregadora, a rica viúva Sra. Haverhill (Sigourney Weaver).
No entanto, o caos invade o Jardim dos Desejos e a existência espartana de Narvel quando a Sra. Haverhill exige que ele aceite sua problemática e conturbada sobrinha-neta Maya (Quintessa Swindell) como nova aprendiz, desvendando segredos sombrios de um passado violento enterrado que ameaçam a todos eles.
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O que achamos de Jardim dos Desejos?
Jardim dos Desejos (que, com todo respeito a quem colocou, é um péssimo título em português) habita um meio termo estético entre o formalismo metódico de Fé Corrompida e a violência com ares caóticos de Cães Selvagens, servindo também como uma espécie de continuação nostálgica para as jornadas solitárias que criou no passado.
Posso não ser a melhor pessoa para falar isso, afinal é um dos meus filmes favoritos da vida, mas lembrei de forma latente e pulsante de Taxi Driver. Mesmo que o diretor negue, a figura do anti-herói de passado sombrio que se esconde no trabalho até precisar agir para salvar uma mulher mais jovem torna essa aproximação bastante real.
O que eu sinto é que Schrader sempre parte do personagem para criar seus filmes. Parece, sendo bastante simplório, que ele esbarra em alguém que chama sua atenção, começa a refletir e, finalmente, constrói uma trama em torno dessa pessoa e do que ela tem a dizer sobre o mundo.
É por isso que, muitas vezes, seus personagens iniciam as respectivas jornadas em uma espécie de bolha bem específica. Explico: em Jardim dos Desejos, por exemplo, o protagonista (principalmente no primeiro ato) está “prisioneiramente” conectado aos jardins – um mundo particular com regras particulares, onde, apesar do passado, ele está protegido de tudo que acontece no mundo externo.
Algo que só começa a mudar quando a chegada de Maya perfura esse domo mantido com tanto esmero e metodismo. A partir desse momento, a proteção, antes intocável, começa a desabar, a apresentar brechas, movimentando o mundo de Narvel de uma forma que nem ele acreditava ser possível. O que não significa necessariamente que Joel Edgerton e o próprio jardineiro estejam preparados para abrir mão desse lado metódico que coexiste na mise en scene de Paul Schrader.
Eu gosto muito de como o ator parte de uma construção absolutamente rigorosa, caminhando, a passos lentos, em conjunto com essa encenação metódica que dialoga muito mais com Fé Corrompida do que com Taxi Driver, por exemplo. Sempre sugerindo que se ater a essas regras é a forma que o personagem encontrou de manter-se num caminho correto que, no passado, não foi sua realidade.
Porém, em Jardim dos Desejos, estamos falando de um personagem que está mais no limite do julgamento social do que Travis Bickle, o padre de Ethan Hawke ou o jogador de poker interpretado por Oscar Isaac. Não vou estragar a surpresa, mas acho curioso como Schrader está constantemente interessado por essas pessoas que tem tudo para serem marginalizadas por suas ações do passado. Pessoas que estão buscando uma saída, porém descobrem que, mesmo fazendo possível para continuar limpo, a solução tende a ser tão suja quanto os fantasmas que os perseguem.
Talvez por isso a melhor saída não seja viver, mas se esconder sobre um trabalho metódico e repetitivo, sem brechas para mudanças ou novidades que possam gerar lembranças. Algo que começa a ser desconstruído após a chegada de Maya ao Jardim dos Desejos, culminando em uma viagem que tira totalmente a proteção e os deixam vulneráveis nesse mundo real onde não é possível manter todas regras construídas a partir de metáforas com a jardinagem.
A solução para Narvel e Maya é se apoiar, garantindo não só a sobrevivência, como também o retorno para o mundo em que eles estão permanentemente seguros. Mesmo que essa volta seja diferente, modificada pelas experiências – às vezes fantasiosas – que o mundo fora da redoma proporciona.
Admito que o carinho e o apoio mútuo são coisas que podem soar deslocadas na encenação metódica e fria de Schrader em Jardim dos Desejos, porém é sob esse distanciamento que ele constrói e desconstrói seus personagens, cultivando contradições que, de uma forma ou de outra, entrarão em rota de colisão.
Afinal, estamos falando de um relacionamento improvável que nasce de uma coexistência obrigatória e, portanto, tão rigorosa quanto a jardinagem. No entanto, como um dos personagens comenta durante o filme, até mesmo o jardineiro mais metódico pode ser surpreendido com algumas brechas férteis por onde nascem flores maravilhosas. Flores que brotam mesmo quando o mundo todo se coloca contra elas…
