Sensação no Festival de Sundance, Às Vezes Quero Sumir coloca Daisy Ridley em situações de desconforto para criar uma dramédia sobre os dilemas de quem convive com a depressão.
Longe de mim querer explicar conceitualmente qualquer doença mental, mas quem convive com momentos de ansiedade ou depressão sabe que nem sempre sabemos o que estamos sentindo. Ora a predominância é da apatia, ora das dúvidas existenciais, sempre gerando um desconforto que tende a gerar mais ansiedade.
Meu antigo psicólogo (que não é Alice) uma vez disse que a ansiedade só toma conta quando precisamos lidar com algo que não compreendemos de verdade. O que justifica ficarmos ansiosos, sedentos por respostas, quando nossa mente mergulha em uma realidade quase impossível de explicar e, portanto, absolutamente desconfortável.
Esse desconforto ocupa papel central na trama e na mise en scène de Às Vezes Quero Sumir, se enraizando pelos cantos do enquadramento e gerando desconforto no público. E não poderia ser diferente, já que o que estamos acompanhando é um reflexo da mente de Fran, a protagonista que costuma se imaginar morta para fugir do marasmo da realidade.
Qual é a história de Às Vezes Quero Sumir?
Às Vezes Quero Sumir se passa numa pequena cidade costeira dos EUA, e acompanha o dia-a-dia de Fran (Daisy Ridley), uma jovem muito tímida que parece estar satisfeita com a vida solitária que leva, de casa para o trabalho, sem muita interação com outras pessoas.
Até que a chegada de um novo colega na equipe, muda a rotina burocrática do escritório e desperta nela uma vontade estranha de o conhecer melhor. Entre jantares e sessões de filmes, os dois se aproximam, lançando Fran em uma jornada de autodescoberta que envolve conexão emocional, a necessidade de lidar com os outros, e a possibilidade dela ser a única barreira para o relacionamento.
>>> Leia também: ‘Furiosa’ não decepciona e é mais um espetáculo sensacional de George Miller
O que achamos de Às Vezes Quero Sumir?
Se Fran não se entende, quem somos nós para buscar qualquer tipo de compreensão nas telas de cinema. Em especial, quando a protagonista é absurdamente comum e mundana, uma pessoa como eu ou você que acorda cedo, trabalha e mantém a mesma rotina até retornar para casa. Às vezes pensa em morrer, mas nem isso é tão diferente assim…
Digo isso, porque não adianta iniciar Às Vezes Quero Sumir com o objetivo de entender a depressão de Fran ou os motivos que a colocaram nesse caminho apático e desconfortável. A direção de Rachel Lambert (essencialmente minimalista) está muito mais interessada em passear pelos sentimentos dela, ora confrontando-os, ora simplesmente os abraçando como se fosse algo inevitável.
Da mesma forma, Daisy Ridley (em busca de um papel que a possibilite demonstrar seu talento) constrói sua personagem com o mínimo, permitindo que poucos diálogos atravessem a apatia emocional de alguém que, por incapacidade de se mover, aceitou ser mera espectadora da própria vida.
Não é por acaso que a personagem muitas vezes desaparece na encenação, engolida por cenários que parecem falsos e pessoas tão robotizadas, protocolares e metódicas quanto a própria Fran. Tudo propositalmente reforçado por Lambert por meio da imagem comprimida, dos enquadramentos claustrofóbicos, das cores lavadas, dos figurinos bizarramente sóbrios e dos planos-detalhe que quebram a imersão de quem está tão acostumado a encarar os protagonistas de frente.
Fran parece estar sempre pelos cantos, fazendo o possível para passar despercebida, enquanto a câmera nos afasta de seu rosto como se quisesse evitar qualquer esboço emocional. É estranho e, em conjunto com os demais elementos da encenação, geram desconforto. Um desconforto que, não por coincidência, também reina na mente da protagonista até a chegada do novo colega de trabalho.
A partir desse momento, as cores ganham um pouco mais de vida para acompanhar a tentativa de movimentação de Fran. Lambert ensaia fugir da impessoalidade apática que vinha desenvolvendo em Às Vezes Quero Sumir na esperança de que a personagem também consiga se colocar em movimento, saindo da inércia que se prendeu em algum momento – desconhecido – da vida.
O incômodo gerado por esse choque abre uma brecha para a intimidade de Fran e revela uma figura muito humana e real. Talvez mais humana do que os colegas que insistem em desenvolver relações artificiais ao invés de pensar na morte. Como se isso fosse uma virtude, de alguma forma.
Por mais que Ridley mantenha um tom constante de apatia, as sutilezas com que Lambert evolui a mise en scène nos aproxima da protagonista, permitindo que o terceiro ato de Às Vezes Quero Sumir seja uma espécie estranha de história de amor. E não é qualquer amor, visto que ele é o responsável por tirar Fran da sua prisão e desafiá-la a se conectar com outro ser igualmente solitário.
Não deixa de ser estranho, incômodo e desconfortável, porém permite que a vulnerabilidade cresça pelas brechas do concreto depressivo e se torna até mesmo apaixonante. Afinal, não tem como não se interessar e torcer pelo sucesso de alguém tão ordinário que, em nome de sentimentos incomuns, decide lutar contra o seu próprio apagamento. Uma luta para reaparecer que, ao contrário do restante do escritório, não é movida por ego, e sim pelo mais singelo e carinhoso desejo de viver.