A Conferência | Recriação histórica com requintes de crueldade

A Conferência
Foto: Divulgação / A2 Filmes

A Conferência é recria com fidelidade um momento cruel, abrindo espaço para vários questionamentos morais


Em 20 de janeiro de 1942, representantes de alto escalão do regime nazista alemão se reuniram em uma idílica vila no Great Wannsee, no sudoeste de Berlim, para uma reunião que ficou para a história como a Conferência de Wannsee. Por conta do seu alcance, fatalidade e consequências, é possível que essa seja a conferência mais terrível da história humana. 

Estavam presentes 15 líderes da SS, do NSDAP e da burocracia ministerial. Eles foram convidados por Reinhard Heydrich, chefe da polícia de segurança e do SD, para uma “reunião seguida de café da manhã”. O tópico exclusivo da discussão de aproximadamente 90 minutos é o que os nacional-socialistas chamaram de “Solução Final para a Questão Judaica”, que significa a organização burocrática do assassinato em massa de milhões de judeus de toda a Europa.

Eu não poderia começar esse texto com outra coisa que não fosse a sinopse de A Conferência. Isso porque você, caro leitor, precisa ter a sinopse em mente para aceitar desde já que estamos diante de uma experiência cruel.

A Conferência
Foto: Divulgação / A2 Filmes

O que não significa que se trata necessariamente de um filme cruel, apesar dessa linha de raciocínio passar por questionamentos éticos que sempre tento afastar das discussões sobre cinema. Questionamentos que, por dialogar com os “objetivos” de uma obra, podem acabar trancando produções em caixinhas herméticas.

E já preciso deixar claro, de antemão, que não possuo respostas esclarecedoras para nenhuma das perguntas que preencheram minha mente. Só que também não poderia falar sobre A Conferência sem abordá-las no decorrer do texto, uma vez que foram presença constante na exibição.

A Conferência como recriação histórica

Antes mesmo da primeira imagem ocupar a tela, o diretor já deixa claro que se baseou nos autos da reunião que dá nome ao filme, sugerindo que busca por algum realismo. Não posso afirmar que ele abre mão de toda a licença poética ou da ficção, mas acho justo dizer que existe um interesse genuíno por recriar esse momento pouco conhecido e absolutamente doloroso.

A Conferência
Foto: Divulgação / A2 Filmes

Foi a partir desse ponto que surgiu meu primeiro questionamento: é certo construir uma representação tão fiel de um evento com esse? Será que Matti Geschonneck (o diretor) não acaba dando mais visibilidade a esses personagens do eles mereciam?

Digo isso porque, na minha cabeça, A Conferência tinha potencial para ser uma espécie de Malmkrog – um retrato sarcástico e quase teatral de uma nobreza que se reúne para definir o que fazer com as classes que está abaixo delas. O objetivo do romeno Cristi Puiu, no entanto, não é recriar passagens históricas, e sim apontar bizarrices, arrancar a casquinha da ferida e tirar sarro da soberba absurda que percorre as veias dessas pessoas.

A Conferência até faz algo parecido em algumas passagens específicas, mas elas ficam meio contidas principalmente nas sequências externas e na segunda parte do debate. Na maior parte do tempo, o que temos é um filme claustrofóbico, denso e brutal que abre mão até mesmo da trilha sonora para deixar todas as emoções ligadas exclusivamente ao que está acontecendo na mesa de debate.

A Conferência
Foto: Divulgação / A2 Filmes

Em outras palavras, Geschonneck leva o espectador para aquela sala de conferências com vista pro lago e o abandona na cova dos leões, ouvindo soldados e políticos nazistas falarem coisas cruéis sem nenhum contraponto. Seja ele um contraponto de opinião, que poderia deixar o debate mais acalorado, ou qualquer contraponto audiovisual que ajudasse a acentuar ironias, dramas e a tensão do momento.

Crueldade sem floreios

Claro que o diretor não possui obrigações contratuais quando se trata de conduzir nossas emoções, mas a maneira como ele prioriza a recriação histórica com pouquíssimas “firulas” me levou a outro questionamento: qual seria o impacto de um filme como A Conferência em um mundo onde a extrema-direita vem ganhando muita força?

Eu, como um eleitor antifascista, posso dizer que fiquei bastante incomodado com o que estava assistindo. Para mim, um debate sem espaço para opiniões contrárias que transforma os judeus ora em objetos, ora em uma espécie de lixo pronto para ser descartado, deixa claro que esse tipo de pessoa não pode votar ao poder. Mas será que essa é a interpretação de todos?

A Conferência
Foto: Divulgação / A2 Filmes

Ainda que o texto de encerramento iguale os pensamentos do diretor aos meus, a decisão de recriar a conferência abrindo mão do poder de ressignificação do cinema me incomodou ao ponto de quebrar a imersão em diversos momentos. Eu senti que Geschonneck estava perdendo uma oportunidade única de transformar esse momento de ódio gratuito em algo mais poderoso.

No entanto, é importante deixar claro essa parte da minha opinião está mais ligada ao que eu gostaria que o filme fosse, e não ao que ele é

A supressão da trilha e a forma como a câmera passeia pelo cenário sugerem que ele quer transformar as discussões em possibilidades, compreendendo as consequências que acompanham essa decisão. É possível, por exemplo, que antissemitas (como Kanye West deixou claro, essas pessoas ainda existem) se levantem das cadeiras e aplaudam as falas mais absurdas ao invés de enxergarem a crueldade do debate. 

Isso me fez pensar que A Conferência, como uma recriação história absurdamente fiel, talvez encontrasse um espaço muito interessante em um museu. O grande porém disso tudo é que o diretor não tem a obrigação de me agradar, enquanto meu dever como crítico, pelo contrário, deve ser analisar pelo que ele é. O que ele poderia ser fica como tópico para outras discussões. 

A Conferência
Foto: Divulgação / A2 Filmes

E, pensando nisso, seria muito injusto não elogiar A Conferência. Até mesmo porque eu gosto do filme e acredito que exista impacto na forma como Matti Geschonneck recria os eventos com solidez, imergindo o público nesse momento de dor na esperança de que o desconforto seja a semente de uma lição antifascista. 

Apesar das ressalvas, eu só posso dizer que acompanho o diretor nesse desejo de que, no final das contas, a honestidade brutal e sem escrúpulos morais dessa recriação transmita de fato uma mensagem de alerta para nossa sociedade.


A conferência estreia nos cinemas brasileiros no dia 03 de novembro

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