Filme brasileiro gravado majoritariamente na Turquia, Jorge da Capadócia remonta a origem de São Jorge em produção com aspirações de blockbuster que acaba repetindo o “mesmo de sempre”.
Quando o assunto é produção cristã brasileira, eu, particularmente, tenho dois referenciais muito fortes: os longas bíblicos que, há algum tempo, eram figurinhas carimbadas na Sessão da Tarde durante a Semana Santa; e, mais recentemente, as novelas da Record (seja isso bom ou ruim…).
E o mais curioso é que ambos coexistem de certa forma em Jorge da Capadócia. Por um lado, os rostos que compõem o elenco, a caracterização histórica e os efeitos flertam, sem tanta vergonha, com os parâmetros estéticos das novelas; por outro, o diretor, Alexandre Machafer, ficou conhecido por comandar O Filho do Homem – obra religiosa que, possivelmente, teria espaço nas tardes da Globo em um passado não tão distante.
Dito isso, podemos falar especificamente sobre a cinebiografia de São Jorge, uma das figuras cristãs mais conhecidas no mundo. Ou melhor, a história de origem que acompanha o militar Jorge na jornada de provações que ajuda a construir esse mito, cuja imagem enfrentando o dragão com seu cavalo branco conquistou espaço de destaque em crenças diversas, estádios de futebol e outros espaços nem sempre religiosos.
Qual é a história de Jorge da Capadócia?
A história se passa durante os anos do violento regime do Imperador Diocleciano, quando ele inicia sua última grande perseguição aos cristãos. Após ter vencido mais uma grande batalha e ser promovido a novo capitão do exército, Jorge se vê diante de seu maior desafio: ser fiel à sua fé e a suas convicções ou sucumbir às ordens cruéis do imperador.
O guerreiro faz de tudo para conciliar os desafios que envolvem proteger a sua nação e sua família, o que se prova um grande obstáculo em meio à violência e injustiça do governo. No entanto, ao mesmo tempo, a luta incessante pela justiça do povo o transforma em uma figura importantíssima para o imaginário popular.
O que achamos de Jorge da Capadócia?
Eu admito que, por conta dos referenciais citados acima, eu esperava pouco de Jorge da Capadócia. Porém, é justo dizer que o filme começa de forma curiosa, direto na cena de ação, flertando tanto com o épico histórico quanto com as sequências de ação mais estilizadas que se tornaram padrão ultimamente.
Afinal, a produção constrói sua fundação na compreensão de que seria possível unir os referenciais citados, levando padrão industrializado da Record para o cinema dentro de um molde que conseguisse abraçar os signos do épico religioso de uma maneira mais clássica, mais frontal. E só para avisar, não vale dizer que a versão cinematográfica de Os Dez Mandamentos chegou antes, porque não passa de uma reedição esculhambada da novela.
Acredito que por entender seus referenciais e saber a relação que o público possui com os mesmos, Jorge da Capadócia aposta algumas fichas nesse início com um possível diferencial. Parece que a autoconsciência de Alexandre Machafer direciona o investimento para essa mistura de gêneros na esperança de quebrar as expectativas, se aproveitando do espaço que obras como Game of Thrones e Vikings possuem no imaginário popular.
E conta com uma vantagem nessa missão: mesmo sem informações precisas sobre a parte histórica do personagem, a história de São Jorge é composta, quase exclusivamente, por passagens icônicas que dialogam muito bem com os gêneros escolhidos.
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O problema é que apenas a vontade ou a autoconsciência dos ingredientes que podem ser utilizados não são o suficiente. Digo isso porque esse é um pequeno detalhe, uma surpresa passageira, dentro de um todo que mira no épico, mas é derrotado sem muita glória por um problema crônico de encenação.
Mesmo brincando de forma eficiente com a violência das batalhas, Jorge da Capadócia raramente vai além do plano médio ou das coreografias picotadas. Ele não se permite explorar de verdade as batalhas ou paisagens, com enquadramentos abertos que pelo menos se aproximassem da grandiosidade que a própria história pede.
Ao mesmo tempo, vale destacar outros dois pontos: como os atores sofrem com a ausência de movimentação e fluidez entre câmeras, pessoas e cenários; e como os ápices dramáticos perdem força graças a mise-en-scène sem fôlego e uma trilha sonora que jamais chega ao clímax. E, por mais simples que seja, ouvir o som crescendo e a trilha ganhando ares mais épicos faz falta em algumas épicas.
Sei que, por um lado, a insistência nos planos fechados e todos os problemas que citei estão conectados diretamente ao baixo orçamento de Jorge da Capadócia. No entanto, também é impossível não sentir um certo desperdício no ar, visto que até mesmo as filmagens na Capadócia são pouco utilizadas.
Por mais que tenha apresentado bastante consciência na mistura de gêneros, o ponto fraco no trabalho de Alexandre Machafer está na ausência de saídas criativas. Ou melhor: no fato dele permanecer no caminho confortável e repetitivo dos referenciais, no “beabá” dos manuais de linguagem, quando o orçamento o coloca em cheque, diminuindo assim o impacto de um filme que teria potencial.
Não é por acaso que o que sobra em Jorge da Capadócia é uma mensagem padronizada sobre fé, religiosidade e superação de obstáculos. Algo entregue por todo e qualquer filme religioso com desejo de inspirar e/ou preencher o espaço motivacional aberto pelos coachs.