Existe uma razão pela qual “Saltburn“, o mais novo projeto da vencedora do Oscar®, Emerald Fennell, é chocante e devastador. Mas devo dizer (infelizmente), que não é porquê de sua destreza argumentativa nem de sua originalidade. A diretora do inesquecível “Bela Vingança” retorna com um texto repleto de ganchos polêmicos e teor tragicômico, no entanto, que perde potência e relevância em seu próprio decorrer.
Desta vez, nosso protagonista é Oliver, interpretado por Barry Keoghan, um jovem calouro de universidade que se vê sozinho e deslocado, até criar um incomum vínculo (e posterior estranha atração) com o estudante aristocrata Felix, vivido por Jacob Elordi. Após uma tragédia familiar, Felix convida o jovem para passar as férias de verão na mansão de sua família, numa região chamada Saltburn, que logo se mostra intimidadora e torna-se palco de eventos gradativamente perturbadores.
Sim… você já viu isso antes. “Parasita” (2019) e “Corra!” (2017) já tinham se mostrado maduros ao trabalhar com as estranhezas e segredos das famílias mais ricas e poderosas, seja na vertente do suspense, seja na utilização do sarcasmo como forma de crítica. Aqui em “Saltburn“, Fennell rega com sua já conhecida acidez e excentricidade personagens odiáveis, cenários deslumbrantes e roteiro afiado, o que o torna, até certo ponto, envolvente e atmosférico.
A fotografia de Linus Sandgren é um espetáculo à parte! Talvez por sua experiência em saturação, já que trabalhou (igualmente excelente) em “Babilônia” (2020) e “La La Land” (2016). A escolha de cores vívidas e envolventes funcionam no filme como uma planta venenosa a atrair uma presa, além de ilustrar o próprio objetivo da narrativa (ou não) em desenhar seus ricos esnobes como gente de comportamento estrambótico e detestável, ao passo que enrolam os mais frágeis em sua teia de singularidades e desejos (será mesmo?)
Por falar em desejos, Emerald Fennell entope “Saltburn” com tensão sexual. A noção de senso racional e desejo, aqui, colidem e causam uma explosão de sensações, que modificam a experiência com o filme. Talvez por isso este seja um projeto complexo, principalmente com o rodar de sua hora final. E quando digo complexo, não é no sentido bom, de uma história com múltiplas camadas de interpretação e críticas sólidas em relevância… digo, pois infelizmente, “Saltburn“, assim como suas próprias personagens nas terras libertinas dos Cattons, se perde completamente e não encontra saída.
A sensação de tragédia dramática ao estilo “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017) é inevitável. Era, porém, deliciosa de se acompanhar, pois Fennell possui um estilo de filmagem que é extremamente agradável, ao equilibrar o absurdo/impensável com o humor mórbido. Em seu segundo longa, então, sua câmera é estática e, por vezes, invasiva; seus enquadramentos são simbólicos, ora amplos e majestosos, ora invertidos e artísticos; sua montagem é inteligente, com determinados momentos, por exemplo, em que utiliza de múltiplos cortes para causar desconforto.
No entanto, logo na metade do segundo ato, a coisa muda. O ar de falta de inventividade chega a níveis não mais toleráveis. Vejamos a personagem de Keoghan, por exemplo, que de estudante inocente passa a exercer um poder “sobrenatural” sobre Saltburn no mesmo nível de seu Martin, no já citado filme de Yorgos Lanthimos, sem nenhum objetivo aparente.
Este, em si, não é o problema, afinal arcos de personagens não só existem, como são extremamente necessários para a evolução de profundidade de um filme. A carga insossa está, justamente, em como esse arco é apresentado, em terreno de muita confusão. O roteiro estabelece inicialmente um drama estilizado, passa por uma comédia ácida, em seguida por um suspense trágico, depois volta a ser um drama estilizado sobre obsessão, volta ao suspense… e nesse meio tempo, personagens somem; uns são esquecidos, depois retornam; como se não houvesse um cansaço em não saber para onde tudo isso vai.
Quando o espectador, finalmente, percebe onde o texto quer chegar, o próprio texto o subestima e sente a necessidade de explicar tudo de novo, com um recurso tão pobre de originalidade quanto as histórias contadas pelo personagem Oliver.
Se “Saltburn” funciona, é por causa de sua capacidade dramática: sua discussão sobre diferenças de culturas e classes misturadas à falta de senso de ridículo das personagens; sua exploração do desejo humano desenfreado quando não há limites (sociais ou financeiros) para tal; sua dialética acerca da obsessão… Porém, enquanto suspense — gênero que está sendo considerado para a promoção do filme –, “Saltburn” não entrega nada além do regular, sendo até esquecível, visto que, ao final do filme, tudo de “impactante” e grotesco apresentado torna-se irrelevante e constrangedor.
OBS. 1: As atuações de Barry Keoghan e Jacob Elordi são excepcionais, e uma das poucas coisas que mantém o interesse no filme;
OBS. 2: Para mim, todas as alusões sexuais (em especial as cenas da menstruação, do ralo da banheira e do enterro, e até a sequência final) perderam força após o término do filme.