Documentário capixaba, Toda Noite Estarei Lá propõe um mergulho democrático e emocional na jornada de luta e fé vivenciada, diariamente, por Mel Rosário.
Eu sempre fico impressionado como, às vezes, coisas que não parecem ter conexão alguma se conectam de formas inesperadas.
Alguns dias antes da sessão de Toda Noite Estarei Lá no Festival de Vitória, um redator publicitário ministrou uma palestra na agência em que trabalho e construiu todo um raciocínio sobre a importância do argumento. Resumindo para chegar logo no ponto, ele possibilita que uma peça publicitária seja construída em cima de um conceito tão forte que ninguém consegue negar ou, quem sabe, resistir.
Mesmo defendendo com unhas e dentes que, no cinema, a imagem deve ser o elemento mais forte, não posso negar que um bom argumento tem sua importância. E documentários como Toda Noite Estarei Lá são a prova disso.
Qual é a história de Toda Noite Estarei Lá?
Após sofrer uma agressão física por transfobia na igreja evangélica que frequentava, Mel Rosário, uma cabeleireira do Centro de Vitória (ES), reivindica seus direitos fazendo protestos diários em frente à igreja que a impede de frequentar os cultos.
Enquanto luta por justiça, nas ruas e nos tribunais, Mel também precisa encontrar brechas para se reinventar e sobreviver em meio a pandemia e aos anos de mandato bolsonarista.
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O que achamos de Toda Noite Estarei Lá?
Não pensem que, ao falar sobre argumento, estou sugerindo que as imagens do documentário de Suellen Vasconcelos e Tati Franklin tem qualquer problema para demonstrar sua força, porque isso é falso. São imagens de fé, luta e solidão que, além do grande impacto, ganham ainda mais fôlego por conta da forma sensível e ativa com que elas mergulham no universo de Mel.
As diretoras assumem o papel de interlocutoras e coadjuvantes em Toda Noite Estarei Lá, quebrando a quarta parede e carregando o espectador para dentro da história junto com elas. De certa maneira, salvo as proporções, parece um pouco o trabalho de escuta e presença de Eduardo Coutinho.
No entanto, por mais que o trabalho de acompanhamento, documentação e decupagem seja bastante interessante, não posso negar que o argumento possui um papel fundamental na experiência. Ver Mel Rosário lutar pelo direito, para muitos banal, de frequentar a igreja é muito forte, em especial porque sua fé permanece inabalável em todos os sentidos e momentos.
Quando subiu no palco do Festival de Vitória para apresentar o filme, Mel deixou clara a importância da sua fé, mas, dentro do próprio filme, nós vemos como nada é capaz de abalar sua fé em Deus (em primeiro lugar, é claro) e na justiça dos homens. Mesmo apanhando, sendo proibida de entrar na igreja ou sendo invisibilizada, ela continua falando de Deus com uma presença que arrebata até mesmo quem não acredita.
Porém, vale lembrar que a força motriz de Toda Noite Estarei Lá não é a religião em si, é algo muito maior. É sobre precisar lutar por seus direitos a cada dia, compreendendo que ter um suporte espiritual pode ser necessário na hora de permanecer de pé. E isso não tem nada a ver com religiões específicas, apesar do longa direcionar suas críticas a uma religião específica.
O fato é que as relações argumentativas que o documentário constrói entre a fé de Mel, sua luta por visibilidade e sua existência como ser humano são muito fortes e verdadeiras. Os protestos, as orações e as negativas (geralmente seguidas por mais orações) impactam, geram reflexões e acabam sendo ressignificadas em comparação com outras ações. Afinal, o que Mel passa é um reflexo do que acontece com a população LGBTQIAPN+ em tantos outros lugares.
E é justamente por isso que o argumento possui tanta força. Porque é impossível assistir a Toda Noite Estarei Lá e fazer pouco caso diante das situações de enfrentamento, impunidade e injustiça capturadas pelas câmeras de Tati e Suellen.
Admito que sinto falta, em alguns momentos, de Toda Noite Estarei Lá abrir um pouco mais os olhos para o mundo, possibilitando o desenvolvimento de outros aspectos sociais que cercam o caso para fortalecer o argumento e dar ainda mais corpo à crítica. Mas, ao mesmo tempo, eu adoro o fato do filme mergulhar tão profundamente na história da Mel.
Digo isso porque se trata de uma personagem muito rica, forte e carismática. Uma verdadeira força da natureza que, além da já citada fé inabalável, demonstra ter um coração imenso e muita vontade de viver, apesar de todos os pesares e obstáculos que a sociedade coloca no caminho. Tudo com uma verdade que torna impossível olhar para ela e não se apaixonar, não ficar hipnotizado.
Vou fazer uma comparação esdrúxula para tentar explicar: assim como é praticamente impossível assistir ao longa e negar a força do argumento, também é muito difícil olhar para Mel – pelas lentes sensíveis de Tati e Suellen – e não torcer por seu sucesso. E não poderia ser diferente, já que, das relações familiares mais banais ao trato cotidiano com as diretoras, ela se revela uma presença intensa e inegavelmente poderosa, que ocupa a tela de um jeito muito foda.
Esse mergulho completo permite, entre tantas coisas, que Toda Noite Estarei Lá amplie suas fronteiras, criando, por exemplo, bons momentos de comédia para equilibrar o jogo de opiniões. Não chega a ser leve ou despretensioso, mas evita que o longa saia apontando dedos e se torne uma denúncia pela denúncia.
Ela está ali, no centro de tudo, porém nunca é mais importante do que a vida da própria Mel. Do que as vivências e histórias dessa mulher incrível que decidiu, na alegria e na tristeza, que toda noite iria lutar pela sua existência e se encontrar com Deus a sua maneira.
E a única certeza que eu tenho é que Deus está muito mais próximo dela do que dos homens supostamente santos que tentam impedir essa relação de fé absolutamente genuína…