Nova minissérie histórica da HBO, Os Encanadores da Casa Branca se divide entre a comédia e a biografia para tirar sarro da direita e mostrar as jogadas escondidas que fazem a máquina girar – nos EUA e em qualquer outro país.
17 de Junho de 1972.
Esse foi o dia em que cinco homens foram presos tentando invadir um dos prédios do Complexo Watergate, a sede do Partido Democrata. O ponto de partida de uma longa investigação, conduzida tanto pelas instituições governamentais quanto pela mídia, que só chegaria ao fim anos depois.
Entre os personagens mais importantes DE Os Encanadores da Casa Branca estão Carl Bernstein e Bob Woodward, os jornalistas do Washington Post que desvendaram todo o caso com a ajuda de um informante conhecido como Garganta Profunda. O ponto principal da matéria é a revelação de que o presidente Richard Nixon – anticomunista declarado e candidato à reeleição pelo Partido Republicano – tinha pleno conhecimento da invasão e de toda a operação de espionagem que cercava o evento.
Eles também descobriram que o Comitê de Reeleição (conhecido popularmente como Creep) usava dinheiro não declarado para financiar operações que, na maioria das vezes, tinham como objetivo plantar escutas em locais frequentados pelos democratas. Informações que poderiam ser usadas como arma midiática nas eleições, visto que o primeiro mandato do republicano foi cercado por várias polêmicas que poderiam enfraquecê-lo nas urnas.
No entanto, a investigação não abalou a campanha de Nixon, que foi reeleito meses depois com uma vantagem expressiva. O que não impediu a investigação de continuar, desta vez sob o comando do FBI e do Senado americano.
Em março de 1973, um inquérito foi aberto pelos senadores. Um mês depois, três assessores do presidente renunciaram, levantando ainda mais suspeitas. Em maio, as sessões do Senado ganharam espaço na televisão, atendendo ao clamor de um povo aparentemente arrependido de sua decisão nas urnas.
Em julho, veio a grande revelação de que as conversas do Salão Oval (também conhecido como o escritório do presidente) eram gravadas a pedido do próprio Nixon. Apesar de todas as tentativas de impedir tal revelação, os áudios comprovaram que o presidente não só sabia da invasão ao Watergate como usou sua posição de poder em diversas tentativas de obstruir a investigação.
“É isso que move essas pessoas: medo e poder. Ou pior: o medo de perder o poder.”
Outra revelação importante é que Richard Nixon participou ativamente da criação dos “Plumbers” (em tradução literal, encanadores), um grupo dedicado a encontrar informações negativas dos opositores do presidente. Uma espécie de escritório do crime que ganhou força após a revelação de outro escândalo: o Pentagon Papers.
Essas revelações fizeram com que o impeachment de Nixon se tornasse inevitável. Depois que seu partido o abandonou e seus aliados começaram a assinar acordos com a polícia, ele decidiu ser o único presidente americano a renunciar ao cargo. Fez um pronunciamento televisivo no dia 8 de agosto de 1974, passando a faixa para o vice Gerald Ford com o propósito de “acelerar a recuperação do país”.
Curiosamente, Ford concedeu a anistia a Richard Nixon um mês após tomar posse, livrando o ex-presidente de responder por seus crimes na justiça tradicional.
E se o Watergate fosse uma grande comédia de erros?
Desde a década de 70, o cinema e a televisão já dedicaram muito tempo às mais variadas adaptações, dramatizações e interpretações desse que é, possivelmente, o caso mais conhecido de corrupção da terra do Tio Sam. Todos com pontos de vista diferentes: dos jornalistas que revelaram tudo em Todos os Homens do Presidente; do delator em Mark Felt – O Homem que Derrubou a Casa Branca; do repórter britânico que decidiu entrevistar o ex-presidente Nixon em Frost/Nixon; do próprio Nixon na longa cinebiografia homônima dirigida por Oliver Stone; da esposa silenciada do amigo fiel em The Martha Mitchell Effect; e de outros personagens esquecidos na série Gaslit.
Isso sem contar com sátiras ficcionais e outras indicações que correm por fora. Minhas favoritas são Watergate – um documentário de 4 horas que, ao contrário dos recortes acima, usa gravações da época para lançar uma visão macro sobre o caso e seus impactos na política atual dos EUA – e a comédia nonsense Todas as Garotas do Presidente, com Michelle Williams e Kirsten Dunst.
Em Os Encanadores da Casa Branca, entramos de cabeça em um mundo pouco explorado, porém muito importante: o ponto de vista dos espiões que lideraram tanto as ações de enfraquecimento dos opositores, quanto a invasão ao Watergate. Eles são o advogado G. Gordon Liddy (Justin Theroux) e o ex-agente da CIA E. Howard Hunt (Woody Harrelson).
“Isso não é um trabalho para ele. Essa guerra contra a esquerda é uma religião.”
O primeiro é um sujeito estranho e metódico com uma quedinha por discursos nazistas. O segundo, um workaholic trapalhão que começou a escrever romances policiais de gosto duvidoso após ser demitido da CIA. A única coisa que eles compartilhavam era justamente o combustível do grupo: um fanatismo político que os mantinha em constante guerra contra uma ideia de comunismo que, supostamente, estava prestes a tomar conta dos EUA.
Inclusive, eu decidi não falar sobre política americana no título durante o processo de escrita desse texto. O motivo é que, mesmo lidando com um conceito de patriotismo puramente americano, essa história poderia acontecer em qualquer lugar. E notar tal semelhança, nascida no mais puro nonsense, é o que deixa Os Encanadores da Casa Branca ainda mais interessante e engraçada.
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Todos os países possuem seus próprios Nixons e seus próprios encanadores. De um lado, políticos que criam guerras falsas para ganhar mais poder, cercando-se de bajuladores dispostos a defender esses ideais até o fim. Do outro, pessoas fanáticas que depositam sua confiança nesses líderes nada confiáveis, dedicando suas vidas a defendê-los por meio das ações mais absurdas.
E aqui vai um segredo: essas pessoas são meros peões. Caem antes de todo mundo e, mesmo assim, contrariam todo o bom senso para continuar argumentando contra o inevitável.
“Eu faria de novo pelo meu presidente”
A frase acima poderia ser uma piada, mas não é. Ela foi proferida por G. Gordon Liddy anos após ser condenado por sua atuação no caso Watergate e passar mais de quatro anos na cadeia.
Os Encanadores da Casa Branca é uma piada pronta na minissérie da HBO Max
Eu sei que demorei para chegar na minissérie em si, mas todo esse contexto exerce um papel muito importante nos cinco episódios que compõem a produção. Afinal, é do fanatismo bizarro de Liddy, da completa inaptidão de Howard (que, por incrível que pareça, já foi agente consagrado), das crenças enraizadas pela direita e da bagunça que reina nos bastidores da política que os criadores Alex Gregory e Peter Huyck retiram todas as piadas.
Inclusive, David Mandel (diretor de todos episódios) declarou em entrevista à revista Veja que nenhum dos envolvidos precisa se esforçar para ser cômico. Tudo vem dessa história inacreditável que ele classifica como “uma tragédia muito engraçada”.
No entanto, mesmo sem escrever piadas, Mandel entrega seu melhor trabalho na minissérie Os Encanadores da Casa Branca. Responsável por pérolas como o filme Eurotrip e a série Veep, o diretor se destaca graças ao olhar satírico que lança sobre todos os acontecimentos, do jantar mais íntimo entre os casais até a invasão propriamente dita, transformando a saga de Liddy e Hunt em uma comédia de erros que certamente faria os Irmãos Coen abrirem um sorriso.
Ele posiciona todos os holofotes na direção desses dois underdogs que acreditavam tanto em suas próprias capacidades, quanto na lealdade do governo, e não poupa o público dos detalhes mais sórdidos. Ele acompanha cada passo tortuoso dessas figuras bizarras, explorando com prazer a autoestima exagerada, as decisões bizarras e a escalada surtada dos acontecimentos.
Mandel está se divertindo na cadeira de diretor e isso contribui para a criação de um limbo perfeito, onde é possível tirar sarro das engrenagens da política americana e suas figuras caricatas sem esquecer que está diante de um casos de corrupção e abuso de poder mais sérios da história. Ele não diminui o peso dos acontecimentos, apenas faz jus à bizarrice dos protagonistas e a burrice que permeia o Watergate.
E Os Encanadores da Casa Branca faz isso de maneira tão segura, intensa e divertida que não parece existir outra forma de contar essa história. Parece que o período de Nixon (um presidente que gravou provas contra si mesmo no seu próprio escritório) nasceu para ser contado a partir desse ponto de vista inesperado que, assim como acontece em Veep, faz questão de dar zoom nos detalhes mais absurdamente reais.
É isso que Mandel faz ao construir grandes sequências em torno da apresentação das operações nomeadas como pedras preciosas, das missões disfarçadas, dos planos mirabolantes, das relações familiares nada tradicionais e, por fim, das invasões (sim, eles fizeram mais de uma vez) ao prédio do Partido Democrata. O diferencial é que, seguindo o livro de ouro das comédia de erros, cada decisão idiota leva a uma consequência mais idiota, culminando em um quarto episódio que tem potencial para um dos melhores do ano.
O caos sendo instaurado no comitê de reeleição, o surto egocêntrico de Howard e a frieza estúpida de Gordon ganham contornos incríveis nas mãos de Mandel. Eu juro que passei os cinquenta minutos de exibição hipnotizado pelo modo como ele conecta as tramas, transitando com habilidade e agilidade entre as vidas privada e pública dos personagens com o propósito de ressaltar como o menor dos errinhos teve impacto no desenrolar da investigação.
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Curiosamente, esse é o episódio em que o diretor também deixa claro que seu interesse principal sempre foram os personagens. Ele filma todas as ações e suposições da forma mais absurda possível (o diálogo entre Gordon e Jeb enquanto o primeiro tritura dinheiro é meu favorito) e arranca boas risadas, mas sempre faz questão de voltar sua atenção para o impacto disso na vida dos protagonistas.
Não estou dizendo que isso não é uma realidade nos episódios anteriores de Os Encanadores da Casa Branca, até porque não existe nada mais absurdo e engraçado do que a maneira como Woody Harrelson e Justin Theroux se portam em cena.
Desde o primeiro instante, o trabalho de Mandel na direção está apoiado nas interpretações caricaturais e na relação disfuncional que precisa ser desenvolvida entre eles. A diferença é que o quarto episódio nos aproxima deles em um momento de desespero, analisando as reações de cada um a essa queda, que acontece muito antes da renúncia de John Mitchell, Richard Nixon ou qualquer outro peixe grande.
“Se a nossa salvação depender do senso de justiça de um ditador barato, estamos muito ferrados”
Mandel transforma a autodestruição de Howard e Gordon no verdadeiro alvo da satíra e abre espaço para o público encontrar duas personas que também fazem parte de qualquer cenário político: o peão que se acha importante e aceita o sacrifício em nome do grande líder; e o peão que se desespera quando percebe que desperdiçou sua vida em prol de uma luta cujo vencedor está definido há muito tempo.
Theroux incorpora a primeira persona com uma autoconfiança tão grande que beira o assustador, tornando cada passagem de Liddy em um momento passível de gargalhadas. Já Harrelson se entrega à loucura, permitindo que seus trejeitos exagerados tomem a tela enquanto sua casa vira um ambiente de terror e claustrofobia.
Uma claustrofobia acelerad em Os Encanadores da Casa Branca a que está muito mais interessada na decadência que vai surgindo aos poucos no horizonte daquela residência. Inclusive, o fato de Harrelson ser um fanático antivacina na vida real dá um toque delicioso de ironia a cada uma dos momentos em que Howard se enconde atrás de novos planos mirabolantes para justificar o último erro.
Lena Headey (a Cersei de Game of Thrones) também ganha espaço como a voz da razão nesse momento, puxando uma curva dramática que se estende, mesmo sem ela em cena, até o fim de Os Encanadores da Casa Branca. Sua personagem dá nome ao episódio e representa uma virada considerável nos arcos, principalmente de Woody Harrelson e sua família.
“Eu perdi tudo”
Admito que a forma como a política ganha toques mais sérios em Os Encanadores da Casa Branca pode destoar um pouco do desenvolvimento cômico que tanto elogiei até aqui, porém estamos falando de uma mudança sutil e muito alinhada à derrocada daquele governo cheio de seguidores cegos. Digamos que é um baque necessário para reforçar as pontes entre passado e presente, entre os EUA e outros países que também viveram situações similares.
Mas não se engane, achando que a seriedade substitui os erros absurdos, porque o movimento é o contrário. Eles continuam em cena, ocupando um espaço central na narrativa, seja em momentos de comédia involuntária (como nas citações a Nixon se livrando após criar provas contra si mesmo), de tensão ou de arrependimento.
“Essa é uma decisão de que se arrependerá pelo resto da sua vida”
Os últimos se tornam mais frequentes, já que o final dedica bastante tempo às consequências dessa lealdade cega que carrega Howard e Gordon para o fundo do poço. O olhar satírico permanece, mas precisa dividir a tela com dois personagens obrigados a lidar com o peso de suas escolhas. No fundo, essa é a verdadeira condenação dos protagonistas, apesar deles encararem a melancolia de maneiras diferentes.
Um abraça a tristeza e segue seus dias assombrado por uma mistura de culpa e solidão; o outro prefere se enganar e disfarçar seus erros com uma caricatura de herói que, mesmo sem credibilidade alguma, o leva ao “estrelato” em dois episódios de Miami Vice. Quem é quem, eu deixo para vocês adivinharem…