Lilith | Que o patriarcado queime no fogo do inferno…

Lilith
Foto: Divulgação

Filme brasileiro, Lilith mergulha na mitologia da Criação para falar sobre um patriarcado que acompanha a humanidade desde o princípio.


Segundo a rede mundial de computadores, o único versículo da Bíblia que faz uma possível referência (bastante metafórica e sem citar qualquer nome) a Lilith é Isaías 34:14. Na passagem em questão, alguns teólogos relacionam uma palavra hebraica traduzida como “criaturas noturnas” a uma possível citação ao demônio Lilith.

É muito pouco e talvez seja justamente por isso que, mesmo sendo católico, a primeira lembrança que possuo de Lilith vem de Supernatural. Mais especificamente a partir da terceira temporada, quando ela surge como a primeira demônio criada por Lúcifer e nova antagonista dos Irmãos Winchester.

No entanto, mesmo essa versão, conta muito pouco da história por trás de Lilith e quando o faz não possui grandes conexões com a Bíblia ou com a lenda babilônica que aborda a personagem de maneira mais direta.

Segundo essa lenda, a primeira mulher de Adão não foi Eva, e sim Lilith. Ela e Adão foram criados do pó da terra, mas Lilith não era submissa por ter “saído da mesma forma” que ele. Mais do que isso, ela exigia igualdade e não aceitava ser dominada pelo marido, chegando ao ponto de abandonar o jardim do Éden.

Deus tentou convencê-la a ser submissa, mas ela rejeitou qualquer reconciliação e, por isso, se tornou um demônio. Como Adão ficou sozinho e triste, o Todo Poderoso seguiu um caminho diferente e criou Eva a partir da costela de Adão para garantir obediência eterna.

Algumas versões da lenda ainda incluem que Lilith, com ciúmes de Adão, assumia o papel da serpente para convencer Eva a comer o fruto proibido, pecar e destruir o relacionamento.

Lilith
Foto: Divulgação

Qual é a história de Lilith?

Partindo relativamente da mitologia citada acima, em Lilith, o cineasta Bruno Safadi (Sofá) lida com questões bastante contemporâneas da sociedade ao trabalhar os arquétipos de Adão e Eva.

Segundo o cineasta, que também assina o roteiro ao lado de Vera Egito e Fábio Andrade:

“Era claro para mim, desde o início do projeto, que me interessava contar a história da Lilith ressignificada, a Lilith das artes, a Lilith da poesia, e contar esta história a partir do recorte da passagem de Lilith com Adão para pensar o lugar do masculino e do feminino nos dias de hoje”.

No filme, Lilith – a primeira mulher do mundo – se rebela contra a dominação de Adão. Depois de se isolar no deserto, ela reaparece como um duplo, Eva, que realiza sua vingança comendo o fruto proibido, se vingando de Adão e se levantando contra o patriarcado.

Lilith
Foto: Divulgação

O que achamos de Lilith?

Quem frequenta festivais de cinema pelo país tem contato mais próximo com um cinema experimental que raramente chega aos cinemas de shopping. Um cinema que recebe essa alcunha justamente por fugir das fórmulas tradicionais, se abrindo para experimentações tanto no campo visual quanto no textual.

Sofá, o único filme de Bruno Safadi que já assisti, flerta com esse campo mais interpretativo, porém não chega perto de mergulhar na mistura de composições visuais, filtros coloridos, poemas, pinturas e cantigas que compõem Lilith.

Tal qual uma lenda embrionária, antes do boca a boca preencher lacunas e criar explicações, o que vemos no filme são recortes dos primeiros seres humanos descobrindo um mundo que, desde o princípio, era dominado pelos homens. Um cenário confortável de liberdade e exploração para o Adão interpretado por Renato Goés; um cenário claustrofóbico e doloroso para a Lilith de Isabél Zuaa.

Sentimentos que ela “coloca para fora” em uma mise en scène que prioriza a teatralidade e a poesia, trabalhando características melodramáticas em primeiro plano. Isso significa que, mesmo cheio de lacunas que dependem da interpretação do espectador, o diretor trabalha com emoções muito diretas e por vezes carregadas no exagero.

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Lilith
Foto: Divulgação

Por mais que nem todo mundo goste desse tom dramático, existe uma cena que une tudo isso de uma maneira que resume a experiência de Lilith pra mim. Nela, Zuaa recita uma poesia para o vento com uma potência que atravessa os ossos, deixando claro a dor sentida pela personagem mesmo quando as palavras fogem da compreensão por conta dos aspectos mitológicos.

Acredito que essa conexão emocional permite que o experimentalismo não fique solto, perdido entre os jogos de luzes e cores que intercalam a narrativa, criando diálogos etéreos entre a mitologia rudimentar e as questões contemporâneas que tanto interessam ao diretor.

Diálogo esse que, para minha alegria, não fica apenas no papel e nas palavras. Claro que Safadi utiliza os discursos e monólogos (também teatralizados) para conduzir a trama de rebeldia contra o patriarcado que conecta Lilith e Eva, mas tal conversa também surge -com propósitos e significações diferentes – no eclipse que une forçadamente o sol e a lua, nas cenas noturnas filmadas em noite americana e nos confrontos constantes entre o digital e a película.

É como se Safadi confrontasse o antigo e o novo, o início dos tempos e os dias atuais, para mostrar que nada mudou. Que o patriarcado nasceu junto com Adão e sobreviveu até hoje à custa de lendas e canções que, apesar da coragem de Eva, sempre colocam a culpa na mesma pessoa, definindo pecados mortais e conduzindo as mulheres a um esquecimento de caráter eterno.


Lilith chega aos cinemas brasileiros em 14 de março, com distribuição da Pandora Filmes.

Lilith
Foto: Pôster de Lilith | Divulgação
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