Luca Guadagnino demonstra todo seu domínio técnico combinado com uma sensibilidade impar em Até os Ossos, seu novo projeto sobre um amor canibal e se consagra, não só como um excelente diretor de horror, mas também, como um dos melhores diretores de romance da atualidade.
A despeito das controvérsias em torno do tema indigesto retratado, o cineasta prova que um realizador consciente com a ajuda de uma equipe talentosa consegue contar qualquer história, sem cair no mau gosto.
Qual a trama de Até os Ossos?
Em seu aniversário de 18 anos, Maren (Taylor Russell) é abandonada pelo pai que não suporta mais conviver com os peculiares hábitos alimentares da filha. Ela parte, então, em uma jornada de autoconhecimento pelas estradas dos Estados Unidos em buscas por respostas sobre o seu passado.
Ao longo do percurso, a moça aprende a reconhecer outros canibais, dentre eles Lee (Timothée Chalamet), por quem ela se apaixona, dando início a um conturbado romance que será constantemente colocado à prova.
O que achamos do filme?
O longa segue um casal de canibais que – à parte de suas tendências alimentares não ortodoxas – estão apenas tentando encontrar seu lugar no mundo. Antes de ser uma história sobre canibalismo e assassinatos, é um gentil conto de amor entre dois jovens que se encontram um no outro e tentam fazer o melhor que podem com as cartas que lhes foram dadas.
Até os Ossos é um improvável casamento entre diferentes gêneros e subgêneros, o filme é um road movie que mistura romance com drama e terror, salpicado com elementos característicos dos coming of age (“chegando na idade” em uma tradução livre, tratam-se de histórias sobre amadurecimento) e dos mistérios investigativos.
Mas não se engane. Até os Ossos não atira para todos os lados na tentativa de acertar em alguma coisa, muito pelo contrário, Luca Guadagnino que já tem experiência tanto em romance (Call Me By Your Name), quanto em drama (A Bigger Splash) e terror (o remake de Suspiria), provou aqui que aprendeu com seus acertos anteriores e consegue transitar com facilidade por diferentes gêneros, realçando o que cada um tem de melhor e evitando – quase sempre – seus clichês.
O gore oferecido é sob medida, suficiente para agradar os fãs de sanguinolência, mas ao mesmo, sem exageros caricatos. O horror sugerido também está muito presente e é ainda melhor do que o físico, diversas vezes o sangue na roupa é o bastante para demonstrar a brutalidade de uma cena.
A primeira vez que somos apresentados às tendências canibais da protagonista é por meio de uma cena explícita e serve para dar o baque inicial na audiência.
Por outro lado, em uma das melhores cenas do filme, o diretor opta por não mostrar a vítima sendo devorada, apontando a câmera para outro cômodo da casa, enquanto o espectador apenas escuta os barulhos de carne sendo mastigada. Saber o que está acontecendo sem, no entanto, conseguir ver, faz com que o público fique atento aos mínimos ruídos, intensificando a tensão sentida.
Essa escolha de alternar, em momentos pontuais, o choque da violência com o desconforto inquietante da sugestão se mostra acertada, já que insistir em repetidas cenas de carnificina comprometeria o impacto causado, ao passo que, fugir de sequências mais gráficas poderia deixar o filme com um aspecto artificialmente “higienizado”.
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Aqui vale também especial destaque ao departamento de som, por contribuir com a aflição causada principalmente pelos barulhos de mastigação. De fato, toda equipe artística envolvida em Até os Ossos merece ser parabenizada pelo primor técnico, com menção honrosa à trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross (ambos responsáveis por Garota Exemplar e a A Rede Social).
Taylor Russell entrega uma performance contida, mas extremamente eficaz que lhe rendeu o prêmio Marcello Mastroianni (para atrizes emergentes) no Festival de Veneza. Timothée Chalamet – que também tem créditos de produtor – demonstra toda sua versatilidade ao abandonar o semblante de bom moço para assumir a figura de um bad boy. O jovem ator dá vida ao personagem mais complexo e interessante da obra, pois apesar de ser incrivelmente impulsivo e letal, Lee é na verdade só mais uma alma em sofrimento que se sente deslocado do mundo.
Mas quem rouba a cena é Mark Rylance no papel do estranho vilão, Sully. Sua interpretação aumenta exponencialmente a sensação de desconforto causada no espectador, sempre que ele está em tela há um mau pressagio que o acompanha, como se o pior pudesse acontecer a qualquer momento.
O roteiro de Bones and All assinado por David Kajganich (Suspiria e A Bigger Splash) e Camille DeAngelis (escritora do livro homônimo que inspirou a obra) é o ponto mais inconstante do filme, pois oferece ótimos diálogos em algumas cenas, mas em outras as conversas parecem ter saído de “A Barraca do Beijo”. Outro ponto fraco é a desinteressante investigação que se torna extremamente facilitada e serve apenas para sustentar seu estilo road movie.
Mas a marca de um bom diretor é contornar os desajustes de um roteiro mediano, e aqui Luca Guadagnino atesta sua excelência ao criar sequências de tirar o fôlego que suprem as deficiências do script e distraem o público, sem prejudicar em nada sua experiência. Nas mãos de outro realizador, o longa poderia facilmente cair na pieguice típica dos romances adolescentes, no entanto sob o olhar sensível de Guadagnino, “Até os Ossos” é elevado para além dos clichês – não à toa, o diretor foi merecidamente premiado com o Leão de Prata no Festival de Veneza.
Por fim, fica o destaque que existe muita prudência dos envolvidos para nunca romantizar o canibalismo, que no longa é usado como uma metáfora para o vício e como ele afeta pessoas de diferentes idades e planos de fundos sociais, causando danos irreparáveis e destruindo famílias. A trama também serve de aviso: abandonar esses indivíduos e ignorar o problema, só o tornará pior.
Péssimo e de mau gosto.
Sinopse muito discreta sem indicar o que de fato relata o filme: canibalismo com amor.