Aceitação é A SUBSTÂNCIA mais viciante do mundo | ROTEIRO AO AVESSO

Pôster de "A Substância"

Tudo flui e nada permanece.” – Heráclito

Se com “Revenge” (“Vingança“, 2017) a cineasta Coralie Fargeat já tinha causado uma onda de revolução a partir de ideias já vistas exaustivamente tantas outras vezes, em “The Substance” (“A Substância“, 2024) ela chuta o pau da barraca, leva pra casa o prêmio de “Melhor Roteiro” no Festival de Cannes e oferece um espetáculo visceral e absurdo sobre alguns dos temas mais pertinentes da atualidade: a busca por um corpo perfeito e aceitação. Um filme com tanta profundidade não poderia ficar de fora do Roteiro Ao Avesso, e é por isso que ele será nosso material para discussão de hoje!

Na história, acompanhamos a premiada atriz Elisabeth Sparkle (interpretada magistralmente por Demi Moore) que, no auge de sua carreira, após ser demitida pelo seu chefe misógino (Dennis Quaid, em seu papel mais desprezível), encontra um fio de esperança na chamada The Substance: uma droga alternativa e de posse de um grupo seleto e secreto que promete libertar uma nova e melhor versão de si mesmo.

Elisabeth, encurralada pelo próprio destino, começa o uso e “dá a luz” à Sue (papel da esplêndida Margaret Qualley). Porém, a luta pela inserção no meio social e a inevitável ascendência ao sucesso, faz com que as duas se esqueçam de algo importantíssimo: elas são uma só.

Lembrando que esse texto possui spoilers, então não deixe de conferir essa obra-prima nos cinemas de todo o Brasil. Já teve episódio do “Eu Não Acredito em Nada” (com e sem spoilers) e você pode ouvir pelo Spotify clicando aqui, ou assistir ao episódio completo gravado da live no YouTube por aqui.

Pegou seu kit de ativação? Então aqui vamos nós!

Demi Moore em "A Substância".
Foto: Reprodução.

UMA IDEIA… NOVA?

Sabemos que a temática de perfeição, aceitação social e beleza padrão não é um assunto lá tão estreante nas histórias de cinema. Mas isso nunca foi, necessariamente, um problema. Isso porque o que vale é em como essas histórias são contadas! Afinal, sabemos que uma ideia nova não se sustenta sozinha se não for bem desenvolvida.

É isso que Coralie Fargeat tem feito em sua filmografia: em “Vingança” ela toma a essência do rape n’ revenge (em que a personagem principal é abusada sexualmente e depois sai em busca dos seus violentadores para matá-los por vingança), mas dá seu toque especial como cineasta.

Na verdade, a diretora pode ser considerada uma das integrante da escola Novo Extremismo Francês, subgênero do horror/terror que explora temas tabus de maneira exagerada (como violência, sexo, drogas…) com o objetivo de impactar o espectador. Porém, assim como Julia Ducournau (diretora de “Titane“, 2021), Feargeat busca abordar essa inquietação e essa revolta a partir de um olhar feminino; de como a mulher se veem nessas situações.

Se, em outros momentos, os corpos, as ideologias, os paradigmas voltados ao feminino eram assumidos de maneira estereotipada, fetichista e irreal, já que a execução estava majoritariamente concentrada nas mãos dos homens, agora ela será a chave principal de discussão e o motor para que a história do filme ande, sem abrir mão dos absurdismos próprios do subgênero.

Margaret Qualley como Sue, em "A Substância".
Foto: Reprodução.

Ora, fazer filmes que extrapolem os limites do chamado “bom senso” pode não parecer uma boa estratégia. Afinal, quem irá refletir após assistir a um projeto de duas horas de duração que mostre três cabeças rolando, cinco membros sendo amputados e 70 mil galões de sangue falso escorrendo pelo cenário? Mas, quando se fala em vida real, tudo se torna muito pior.

As pessoas têm parado em frente a acidentes para tirar foto; vídeos de pessoas sendo assassinadas possuem milhões de visualizações… A curiosidade mórbida tem nos feito escravos do proibido e nos tornado imunes ao ver a crueldade como ela é de fato. Sendo assim, faz-se necessário utilizar de uma crueldade três ou mais vezes pior para que acordemos, induzidos pelo impacto que tivemos na sala de cinema.

Porque, querendo ou não, a coisa está feia aqui fora. E não é só sobre acidentes e desmembramentos. É sobre preconceitos, indiferenças, sexismo, etarismo, capacitismo, violência doméstica, pedofilia, racismo… e todo o tipo de crueldade que paramos de perceber. E nada melhor que arte para nos fazer parar e lembrar do quanto é importante enfrentar isso tudo de maneira justa, consciente e eficiente.


A IDEOLOGIA DO CORPO

Elisabeth estava inserida no maior centro de hipervalorização da imagem já conhecido: Hollywood. Berço das mais belas histórias às mais devassas polêmicas; dos mais simples projetos (talvez, nem tão simples assim) até os grandiosos blockbusters.

Tanto é que umas das primeiras sequências do filme é na Calçada da Fama, com a estrela da atriz passando pelos efeitos do tempo. Essa é, antes de tudo, uma cena que retrata um resumo sobre a vida, em que no auge dela você é visto, notado por todos; e depois disso, com o ganhar das rugas (ou rachaduras), você se torna uma menção até estar fadado ao esquecimento.

Algo que pode ser incômodo durante o filme é o porquê da personagem de Moore não ter ninguém em seu círculo social que se lembrasse dela. Familiares, amigos, próximos… ninguém. O próprio narrador que dá as instruções por telefone reitera isso várias e várias vezes em alguns momentos. “Completamente sozinha“. É um retrato duro, porém, de uma pessoa cuja vida foi pautada estritamente nos holofotes. E quando estes foram perdidos, tudo foi por água abaixo junto.

Demi Moore como Elisabeth, em "A Substância".
Foto: Reprodução.

O fato de ser mulher piora ainda mais a situação, no mais repugnante cenário de objetificação. Seus talentos não são reconhecidos, apenas sua aparência.As pessoas sempre pedem por algo novo. Renovação é inevitável“, diz Harvey, o diretor da TV do programa de Elisabeth, quando a está despedindo. Só será sucesso enquanto o corpo for sedutor. Só será sucesso enquanto houver beleza. Só será sucesso enquanto houver… juventude.

A grande quantidade de cenas passeando pelo corpo da personagem de Margaret Qualley é absurda. Chega a parecer uma execução com base no fetiche, mas que revela o quão simplista é a visão comercial para com o corpo jovial feminino: nada além de takes de nádegas, coxas, seios e lábios. Pedaços. Não muito diferente da rima visual entre Sue e o peru que Elisabeth cozinhava compulsivamente em uma outra cena. Ou quando Sue arrancou de dentro de si uma coxa de frango.

Hoje em dia, isso parece se repetir. Com a ajuda das redes sociais, principalmente, os “pedaços” do corpo e da vida de cada um são os mais importantes. Os padrões de beleza tornaram-se comuns e almejados; mas inalcançáveis na mesma medida. E, por vezes, perigosos. Tomemos como exemplo a onda de uso do medicamento Ozempic® há um certo tempo.

A medicação, que foi desenvolvida para o controle de diabetes, estava sendo comprada e utilizada por pessoas com o objetivo de emagrecimento, deixando efeitos colaterais preocupantes e banalizados, como o tamanho desproporcional da cabeça, quando somente o corpo havia “perdido gordura” (daí o termo “cabeça de Ozempic”).

Essa é a realidade de “A Substância” – que um mundo e uma sociedade nada saudável e sem noção de limites faz com uma pessoa ao pressioná-la a ser perfeita. E como isso, aos poucos, vai sendo comprado pelo indivíduo até tomar um caminho sem volta: o da mudança extrema.


A FACA DE DOIS GUMES DO ENVELHECIMENTO

A Substância” oferece uma experiência de contraste. Isso não se dá somente pela escolha de cores (a paleta dos cenários e das vestimentas é saturada e tropical) ou pelas decisões técnicas (como os enquadramentos diferentes ao mostrar Elisabeth ou Sue, as rimas visuais, etc). Temos também a forma como cada uma vive os seus sete dias, e como a versão jovem começa a ter concepções e decisões muito próprias, influenciando de forma muito mais direta a realidade da “matrix“.

Cena do filme "A Substância", de Coralie Fargeat.
Tradução: “Vocês são um só”. | Foto: Reprodução.

Ou até mesmo, a competição e a falta de respeito que uma começa a ter pela outra, com alusões aos comportamentos particulares caricaturados de cada geração. Elisabeth, a medida que tem sua vitalidade sugada por Sue, cede ao desleixo social, ficando presa em casa, comendo, assistindo TV, sem nenhuma produtividade; em contraste com Sue, que ganha montagens pop, promoções e abusa de sua juventude comprando coisas novas, dançando e fazendo o que quer. E isso vai sendo empurrado até os limites do desprezo entre as duas personagens, que deveriam compartilhar de um mesmo propósito, por serem uma.

Podemos notar que existem duas manifestações de sentimentos frente ao envelhecimento que Fargeat desenvolve em seu filme: o medo e a inconformação. Com a crescente decisão do que é um “corpo perfeito” e uma “vida produtiva”, o medo de fugir desse ideal paralisa, por estacionar em algo considerado “monstruoso, feio” (falaremos disso mais à frente), ou chegar próximo do “sem muita utilidade, doente”.

Em Elisabeth, isso se manifesta pelo seu descarte quanto a profissional e, principalmente, quanto a mulher. Tendo sida atingida pela idade, os estigmas falaram mais alto e levaram a uma segregação pautada no preconceito.

Desde sempre, a mulher fora vista com outros olhos. Quando não era a responsável por carregar a marca do pecado, era a que deveria ser a dona de casa sem voz nem vez; quando não era a feiticeira, era a escrava sexual de colonizadores. A imagem do feminino, e principalmente seu corpo, foi vítima de deturpações ao longo de toda a história.

Em contrapartida, o homem permanecia em sua posição de privilégios. Em “The Substance“, Henry usa e abusa de seu poder patriarcal para demitir quem quer que julgue inapta para o programa, não importa o quão repudiante seja sua justificativa, enquanto não sofre das consequência de sua mesma política (nem ele, nem os acionistas mostrados no fim do filme), permanecendo num cargo importante mesmo com idade igual ou até superior a de Elisabeth.

Dennis Quaid como Harvey, em "A Substância".
Foto: Reprodução.

Logo depois, esse medo pelo envelhecimento se transformaria em uma raiva inconformada, ao ponto de aceitar qualquer tipo de resolução que fizesse com que a vida de antes voltasse.

Esse apego pelo sucesso e pela aprovação faz da personagem de Demi Moore escrava do próprio corpo (vejamos o grande quadro em sua sala de estar, em veneração a seu belo corpo quando era jovem) e da própria consciência. Essa indignação, porém, é, antes de tudo, uma construção.

Uma construção praticamente vinda da sociedade (sobre qualquer outro grupo, mas sobre a mulher, especialmente) que pretende limitar ainda mais o jeito autônomo de ser, aproximando esses indivíduos de nada mais que um personagem.


UMA FÁBULA SANGRENTA

Podemos entender “A Substância” como uma fábula adulta, das mais sangrentas. Ao terceiro ato, as coisas, simplesmente, fogem do controle e a fantasia começa a fazer mais sentido (ou menos). Inegável é, porém, o impacto que essa mudança de narrativa possui.

A similaridade da aparência de Elisabeth com uma bruxa clássica não é mera coincidência. Muito menos suas atitudes enquanto assistia à entrevista de Sue pela televisão (chega a beirar o cômico pelo desespero, como quando ela usa a batedeira imaginando ser uma serra elétrica). Ou a própria força física de Sue no embate contra sua “criadora”.

Talvez o retrato aqui seja que, quanto mais próximo da perfeição que o mundo pede, mais desgastante é o processo. Mas principalmente: quanto mais aceitamos a ideia de que tal beleza é a absluta, por mais irreal que ela pareça, mais viciados em alcançá-la ficaremos. Pode parecer clichê, mas isso se deve ao fato de que a perfeição não existe.

O que é considerado ideal pode mudar entre os grupos, entre as pessoas. Então será uma busca incessável por algo inalcançável, que só resultará em frustração.Eu preciso de você… porque eu me odeio“, diz Elisabeth, enquanto não consegue dar fim a Sue, numa das falas que mais partem o coração durante o filme.

Demi Moore como Elisabeth, em "A Substância".
Foto: Reprodução.

Quando Elisabeth não consegue sair para um encontro, porque briga com o espelho na tentativa de se sentir mais atraente, uma vez oprimida pela presença de Sue (na maioria das vezes pela simples imagem no outdoor), vemos o que essa ansiedade pode trazer.

O que começa com uma falta de profundidade e confiança em si mesmo causada por uma pressão social, termina com modificações ininterruptas do corpo que, quase sempre, acabam em uma desfiguração; um irreconhecimento de quem se era antes. Se a perda de si mesmo nas exigências externas se manifestava de maneira emocional/psicológica ao não se sentir aceito, agora passa a ser física.

Uma vez que o padrão não existe (e se existir, estará sempre em constante mudança, portanto igualmente inatingível), qualquer outra mudança tornará o indivíduo um “monstro”, uma “aberração”.The Substance” concretiza isso com o literal MonstroElisaSue, suma representação de que forçar a si mesmo a ser perfeito, ou a perfeição do perfeito, só te deixará cada vez mais longe de quem você realmente é.

Quando vemos MonstroElisaSue lavando a todos no programa de fim de ano com sangue, entendemos que, num certo nível, todos como sociedade somos culpados por propagar esses ideais, de forma direta ou indireta, seja no compartilhamento de um conteúdo, num comentário presunçoso, numa atitude aparentemente inofensiva… e, uma hora ou outra, o que estava contido sairá do controle.

Não é errado adotar procedimentos estéticos, intervenções cirúrgicas, supervalorização de musculatura… O corpo é redescoberto constantemente. Aristóteles foi certeiro ao dizer que “conhecer a si mesmo é o começo de toda a sabedoria“. Sabendo nossos limites, tudo pode ser possível.

A atenção deve ser redobrada, pois, para que esses limites não sejam quebrados, e a insegurança pela insatisfação tome conta do que, de uma forma ou de outra, já é belo por natureza. A mudança de si não deve vir para agradar aos outros; mas sim para um conforto consigo mesmo.

Margaret Qualley como Sue, em "A Substância".
Foto: Reprodução.

Afinal, luzes douradas, reconhecimento de terceiros, sucesso, fama e outros atributos, correspondem a uma pouca parcela comparados ao tempo que temos com nosso íntimo. Aproveitemos esse tempo, seja com vinte ou cinquenta anos; com ou sem botox; dentro ou fora dos holofotes… para que esse tempo não tenha sido em vão, e nosso amor próprio não acabe com a importância de uma mancha de ketchup numa estrela da Calçada da Fama.

***

P.S.: Um agradecimento especial à Raíssa Sanches (raa.sanches), que também escreve para o A Odisseia, pela revisão do texto! S2


REFERÊNCIAS

DANTAS, J. B. Um ensaio sobre o culto ao corpo na contemporaneidade. SciELO, 2011. Disponível em https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812011000300010#n*. Acesso em 08 de out. de 2024.

MOREIRA, V. NOGUEIRA. F. N. N. Do indesejável ao inevitável: a experiência vivida do estigma de envelhecer na contemporaneidade. SciELO. Disponível em https://www.scielo.br/j/pusp/a/rvV7sy9PgPcmTb6KQHTy8Tf/#. Acesso em 08 de out. de 2024.


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