A Metade de Nós | Os diferentes caminhos do luto

A Metade de Nós
Foto: Divulgação

Filme brasileiro estrelado pelos experientes Cacá Amaral e Denise Weinberg, A Metade de Nós aborda a perda de forma emocionante e incrivelmente sensível.

Não é fácil falar sobre suicídio. 

Seja pela complexidade e diversidade das discussões que podem envolver o tema ou pela sociedade o ter transformado em tabu há centenas de anos (desde o lançamento de Os Sofrimentos do Jovem Werther, em 1774, ou pelo menos da criação do Efeito Werther, em 1974), acredito que a frase acima tende a ser vista como um fato.

Não estou dizendo que devemos deixar de falar sobre ou criticando quem decide abordar o tema. Muito pelo contrário, é importante trazer o assunto à tona, de forma segura e cuidadosa, justamente para tirar esse pano de mistério e desinformação que cobre uma das principais causas de morte entre os jovens no Brasil.

No entanto, vale ressaltar que são poucos os filmes que decidem trabalhar com esse tópico de maneira tão frontal como A Metade de Nós. E talvez seja por isso que um dos destaques do longa esteja na sensibilidade com que a direção de Flávio Botelho caminha pelo luto dos protagonistas, trabalhando as consequências de uma perda que pode ser classificada como inesperada e misteriosa. 

Muito por não ser um tema comum entre os familiares e, consequentemente, gerar indagações conflitantes em meio a melancolia que acompanha o luto. 

A Metade de Nós
Foto: Divulgação

Qual é a história de A Metade de Nós?

No longa, Francisca e Carlos são dois sexagenários que lutam para se adaptar à nova realidade após o suicídio do único filho, Felipe. Mergulhados em fantasias, medos e melancolia, cada um lida com o luto a seu modo: ele se muda para o antigo apartamento de Felipe, alienando-se na vida do filho morto; enquanto ela, assombrada pela culpa, dedica-se a desvendar o suposto enigma por trás do suicídio.

A trama de A Metade de Nós surgiu a partir das experiências do próprio diretor, que sentiu a necessidade de falar sobre esses sentimentos após a morte da irmã por suicídio.

“A minha irmã se suicidou em 2007 e quis falar sobre isso, sobre como lidei com essa perda e sobre quão doloroso foi esse processo. Decidi falar por meio de um casal sexagenário, uma mãe e um pai que representam tantos outros, inclusive os meus, nessa longa caminhada do luto”.

Ele completa:

“O suicídio impacta muitas pessoas e os sentimentos são os mais variados. Geram culpa, vergonha, às vezes, raiva. Mas meu pai, por exemplo, teve um processo muito bonito, porque era um cara fechado sobre seus sentimentos e acabou escrevendo um livro sobre a história”.

A Metade de Nós ganhou o Prêmio do Público como Melhor Filme de ficção brasileiro na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

>>> Leia também: Crítica de A Filha do Palhaço | Um circo de solidão em processo de reforma

A Metade de Nós
Foto: Divulgação

O que achamos de A Metade de Nós?

Como iniciei o texto afirmando, falar sobre suícidio não é fácil. No entanto, A Metade de Nós parece adicionar alguns graus de dificuldade quando coloca no centro da trama um casal com décadas de vivência que precisa recomeçar e redescobrir seus mundos particulares, lidando com o vazio deixado pela perda.

Ou seja, por mais que o suícidio seja o tema central, o interesse de Flávio Botelho não está nas respostas, nos motivos que levaram Felipe a tomar tal decisão. Ele está, na verdade, nos convidando a mergulhar, junto com os pais, em jornadas de luto que também são influenciadas por essa ausência de explicações. 

Com as respostas mantidas em segundo plano, o foco da narrativa de A Metade de Nós recai sobre as decisões que movem Francisca e Carlos durante o luto. Escolhas dialeticamente opostas, porém bastante parecidas na forma como se cruzam, de maneira bastante sutil, ora com o desejo de enfrentar, ora com a vontade de fugir e apenas se esconder dos sentimentos. 

A Metade de Nós
Foto: Divulgação

Ambos vivem isso de jeitos distintos e Botelho acerta ao permitir que a encenação seja, na maior parte do tempo, conduzida pela atuação dos dois. E já deixo o aviso: é difícil não ficar impactado com a angústia que Cacá Amaral e Denise Weinberg transmitem apenas com o olhar. 

Algo que ganha contornos ainda mais interessantes quando A Metade de Nós começa a driblar caminhos mais comuns. Explico: a mãe que parecia presa em uma espécie de suspense psicológico sobre obsessão (em parte graças a uma cena de abertura questionável) se torna objeto de análise; já o relacionamento do pai com o vizinho, que flerta com possíveis revelações, no fim se dedica muito mais a documentar a angústia deixada pela perda do que qualquer outra coisa.

São escolhas intimistas que ganham toques de complexidade e profundidade no trabalho de Weinberg e Amaral. Tanto que o longa se aproxima, com aspirações teatrais e alguma curiosidade, do campo dos estudos de personagem.

A Metade de Nós
Foto: Divulgação

Entretanto, o primeiro longa-metragem de Flávio Botelho não é um teatro filmado que coloca tudo nas mãos do texto (minimalista, por sinal) e do elenco. Ele vai além ao propor que a mise en scene abrace o contraste – e, talvez, o confronto – entre as pulsões de vida e morte que acompanham Francisca e Carlos. 

É a partir disso que enquadramentos, movimentos de câmera e demais escolhas estéticas iniciam uma disputa entre resistência e fragilidade, estagnação e capacidade de desconstrução, diálogo e introspecção. O ponto que mais permaneceu comigo foi a constante contraposição entre o som e o silêncio sufocante, estendido até mesmo para as poucas falas de Francisca, que, quando surgem, rompem com o espaço cênico com uma força estrondosa. 

Porém, o mais interessante é que Botelho esbanja segurança e consegue, com pleno domínio dessa encenação, mergulhar em melancolias tão distintas sem julgamentos e com a uma sensibilidade e um carinho que torna impossível não se emocionar, da prisão interior até o momento em que é possível se despir de todos os escudos. 


A Metade de Nós
Foto: Divulgação / Pôster de A Metade de Nós
A Metade de Nós chega com exclusividade aos cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Aracaju, Belo Horizonte, Brasília, Niterói, Recife, Ribeirão Preto e Salvador.
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