Dirigido por Pedro Diógenes, A Filha do Palhaço confronta as solidões de uma relação entre pai e filha para curar feridas deixadas pelo passado.
Volta e meia aparece na internet, em forma de meme ou questionamento filosófico, a pergunta: “E quem faz o palhaço sorrir?”. Portanto, não é nada estranho que essa tenho sido uma das primeiras conexões que fiz com A Filha do Palhaço.
E por mais que essa pergunta se encaixe bem na narrativa conduzida por Pedro Diógenes, eu tirei um tempo para refletir um pouco mais antes de escrever, como sempre faço com longas que me impactam, e tive outro insight com uma canção. Um elemento que, coincidentemente, possui papel importantíssimo no filme.
Mais conhecida por suas canções irreverentes, a banda Pedra Letícia lançou há alguns anos uma música bastante melancólica chamada O Circo de Um Homem Só, composta pelo vocalista Fabiano Cambota ao lado do seu irmão. O tópico central, permeado pela metafórica circense, é a vida com suas alegrias, tristezas, desafios e arrependimentos.
Sentimentos e questões que, por coincidência ou não (duas já é demais, né?), também assumem papel importante em A Filha do Palhaço, enquanto Pedro Diógenes mergulha na relação disfuncional e majoritariamente melancólica entre pai e filha que foram separadas por decisões do passado.
Qual é a história de A Filha do Palhaço?
Joana, uma adolescente de 14 anos, decide passar uma semana com o pai, um humorista que apresenta seus shows em churrascarias, bares e casas noturnas de Fortaleza interpretando a personagem Silvanelly (inspirada em Raimundinha, ícone do humor cearense interpretada pelo ator Paulo Diógenes).
Apesar de mal se conhecerem, pai e filha terão que conviver durante esse período, compartilhando novas experiências e novos sentimentos de uma forma que transformará profundamente a vida dos dois.
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O que achamos de A Filha do Palhaço?
A Filha do Palhaço não tem a história mais original de todas. Você com certeza já assistiu a outras produções – de filmes de ação a comédias escrachadas – que mostram pais e filhos precisando conviver e acertar as contas com o passado após anos de afastamento.
Diante disso, já acho válido iniciar a crítica dizendo que o diferencial longa nacional está na maneira como ele constrói uma abordagem bastante singular, abraçando a melancolia, o isolamento e as transformações sem medo das consequências. Incluindo, os impactos em uma mise en scene que permanece em constante mudança, sempre com uma sensibilidade e um carinho que tomam conta da tela.
No começo de A Filha do Palhaço, por exemplo, o espaço cênico (que muitas vezes se aproxima, propositalmente, do teatral) é vazio e desconfortável. Porém, com o passar do tempo, as conexões vão tomando forma e as cores passam a preencher, de maneira mais vívida, espaços que pareciam frios e sem emoção.
Pedro Diógenes abraça essas contradições e transformações, reconhecendo que a beleza da reconstrução não substitui o vazio deixado pelo abandono. Não é uma simples questão de redenção, mas de confrontos que, movidos pela curiosidade, fazem mais do que revelar novas informações a cada diálogo. São confrontos que reconstroem conexões destruídas, transformando e influenciando os dois lados.
Por mais que a maioria das mudanças sejam sutis, é isso que mantém a mise en scene em constante movimento. O cenário – filmado anteriormente com planos gerais que ressaltam os espaços vazios – ganha mais ternura, as cores da iluminação neon se tornam mais fortes e os movimentos de câmera abraçam a fluidez para revelar como aquele relacionamento, em constante reconstrução, influencia nos gestos, penteados e maquiagens de ambos.
É um processo de descoberta que vale tanto para o pai que não sabe informações cruciais sobre sua filha, quanto para a filha que anseia conhecer de verdade aquele homem que a abandonou por conta de outro amor. Mas é um processo conduzido com sensibilidade e, acima de tudo, respeito pelo tempo de cada personagem de A Filha do Palhaço.
É incrível como Diógenes não cai na tentação de acelerar as coisas para criar mais momentos felizes, assim como escapa da armadilha de preencher o vazio com um melodrama barato que só quer fazer o espectador chorar. Corro o risco de parecer repetitivo, mas ele deixa claro que estamos acompanhando um processo delicado de reconciliação que talvez nunca tenha um ponto final.
As feridas de Joana não foram curadas, da mesma forma que o arrependimento de seu pai não pode ser encoberto definitivamente pela maquiagem de palhaço. Tanto que até mesmo os momentos mais felizes de A Filha do Palhaço são constantemente assombrados pela possibilidade de separação, pelo peso do abandono, por um vazio que parece nos direcionar para um fracasso inevitável.
O que não impede, porém, que Pedro Diógenes celebre cada pequena vitória, cada pequena conexão, com explosões de alegria que dominam a mise en scene. A sequência em que Joana e Renato se libertam dos escudos para dançar ao som de Tô Fazendo Falta, interpretada por Joanna, é uma daquelas cenas que arranca sorrisos e gruda na mente.
Em especial por resumir não só esse momento de felicidade e liberdade, mas também toda a dinâmica da encenação. É um momento mediado pela arte que irrompe a tela por meio de uma câmera fluída, que passeia pelo cenário com a liberdade e a movimentação de quem dança ao lado da família, apesar de saber que existem doses de melancolia e medo no mesmo cômodo.
São sentimentos contraditórios que o roteiro domina, a direção abraça e o elenco extravasa em uma comunhão belíssima. Inclusive, seria muito injusto falar do trabalho de Pedro Diógenes sem ressaltar como a novata Lis Sutter e o incrível Demick Lopes (Inferninho) dominam com espaço cênico de A Filha do Palhaço.
Eles carregam consigo, em gestos e olhares, a melancolia do afastamento, a lágrima do arrependimento, a curiosidade da descoberta, a alegria das conexões genuínas e o medo da repetição. Eles são nossos guias por esse processo de reconstrução que encanta, emociona e aquece o coração, convidando o espectador a superar as marcas e torcer para que a felicidade dos dois não seja interrompida e as boas memórias consigam – um dia – preencher os vazios de uma vez por todas.