20 Dias em Mariupol | Os horrores da guerra no vazio do choque pelo choque

20 dias em mariupol
Foto: AP Photo | Mstyslav Chernov

Possível favorito ao Oscar, 20 Dias em Mariupol surpreende pela perspectiva do conflito entre Rússia e Ucrânia, porém fica dividido entre a obrigação de chocar e o vazio deixado pela ausência de sensibilidade.


Em uma explicação curta e rasa, a Associated Press é uma organização de notícias independente que possui diversos associados espalhados pelo mundo. Geralmente, profissionais locais, como o cinegrafista, fotógrafo, fotojornalista, cineasta, correspondente de guerra e romancista ucraniano Mstyslav Chernov.

Isso permite que, em muitos cenários, eles estejam entre os primeiros grupos jornalísticos a marcar presença. Portanto, para quem conhece esse modus operandi, não ficou surpreso ao saber que suas imagens eram as primeiras fontes de informação vinda de Mariupol quando, em fevereiro de 2022, o conflito entre Rússia e Ucrânia chegou às vias de fato.

Chernov sabia que a cidade seria um ponto de interesse, como já havia acontecido outras vezes, e partiu para o local assim que Putin deu as primeiras declarações relacionadas à guerra. Ali permaneceu até que sua sobrevivência fosse colocada em cheque, criando um relato diário que se transformou no filme 20 Dias em Mariupol.

20 Dias em Mariupol
Foto: AP Photo | Evgeniy Maloletka

Sobre o que fala 20 Dias em Mariupol?

De forma prática e direta, 20 Dias em Mariupol acompanha justamente a estadia de vinte dias de Mstyslav Chernov e sua equipe de jornalistas em uma das cidades ucranianas que faz fronteira com a Rússia. Ou seja, temos um relato diário e muito doloroso sobre os primeiros dias de cerco, conflito e guerra.

Por mais que a cidade já tivesse enfrentado outros ataques e uma nova investida fosse esperada, o que Chernov acompanha de perto é um momento de devastação e esfacelamento social em que as pessoas não sabem exatamente o que fazer. Será que os russos vão atacar civis? Será que a melhor opção é largar tudo e sair da cidade? Será que vamos sobreviver?

Nas palavras do diretor,

“A primeira reação é o caos. As pessoas não sabem o que está acontecendo e entram em pânico. No começo, eu não consegui entender por que Mariupol desmoronou tão rapidamente. Agora sei que foi por falta de comunicação. Sem nenhuma informação saindo de uma cidade, sem fotos de prédios demolidos e crianças morrendo, as forças russas podiam fazer o que quisessem”.

O que achamos de 20 Dias em Mariupol?

Para evitar qualquer desvio de rota, já vou deixar claro desde o início que 20 Dias em Mariupol é, possivelmente, o filme mais difícil de assistir do Oscar 2024. Afinal, em sua gênese, o longa é um grande encadeamento de imagens dolorosas, chocantes, sangrentas e violentas capturadas por Mstyslav Chernov nos dias explicitados no título.

O jornalista e, nesse caso, diretor passa a maior parte do tempo nas ruas, nos hospitais e nos abrigos públicos, realizando filmagens muito próximas de pessoas feridas, mortas, perdidas ou enlutadas. De certa forma, isso é exatamente o que se espera de uma cobertura de guerra realizada in loco.

No entanto, o que foi difícil de assistir se mostrou ainda mais difícil de analisar ou avaliar. Tanto que, após três dias, eu não só continuo dividido em relação à 20 Dias em Mariupol, como estou incomodado por começar a escrever esse texto de um ponto em cima do muro.

20 dias em mariupol
Foto: AP Photo | Mstyslav Chernov

Digo isso porque, por um lado, consigo me colocar no lugar do jornalista e dos personagens apresentados, compreendendo – em partes, é claro – a raiva que os motiva a querer compartilhar cada imagem na íntegra. O sofrimento é tão palpável que parece haver sentido na ideia de que o único caminho para a salvação seria a revelação do conteúdo gravado com a brutalidade e o impacto elevados à máxima potência. O policial que surge no terço final resume tudo isso de maneira honesta, apesar de um pouco ingênua.

>>> Conheça Tótem, o filme mexicano que era aposta no Oscar e agora está na Netflix

Entretanto, ao mesmo tempo, não posso negar que fiquei incomodado com a total ausência de sensibilidade em 20 Dias em Mariupol. E não digo por acreditar que o público precisaria de um filtro que os poupasse dessa versão sem cortes, mostrando as atrocidades com toda a carga de realismo.

Eu vejo a sensibilidade como uma ferramenta narrativa ligada à cadência que ajuda a contar a história. Como uma peça de quebra-cabeça cuja ausência transforma o longa em uma gigantesca e cansativa reportagem de choque digna do Brasil Urgente.

Assim como acontece na música, um filme também precisa trabalhar sua cadência e seu ritmo. Ou seja: da mesma forma que uma canção precisa da dinâmica entre estrofe e refrão para que o segundo tenha impacto, não é recomendável, por exemplo, que um longa simplesmente cole sequências de pancadaria sem nenhum respiro. Esses momentos possuem um papel narrativo significativo de contraste, bem na onda do clichê “só dá valor a luz, quem já conheceu as sombras”.

Mesmo sem entrar no âmbito do desenvolvimento dos personagens, é importante construir bons momentos de calma para que a ação desenfreada tenha mais impacto. É importante apresentar um pouquinho de esperança – ou qualquer outro sentimento espectralmente oposto – para que o próprio sofrimento tenha mais peso.

Considerando que 20 Dias em Mariupol possui poucos personagens recorrentes, podemos retirar o desenvolvimento dos mesmos da nossa equação sem grandes problemas. Porém, isso não muda o fato de que a montagem está plenamente satisfeita com o mero encadeamento de imagens chocantes e desesperadoras. Parece até que quanto mais mortes conseguirem encaixar por minuto, mais satisfeitos estarão.

20 dias em Mariupol
Foto: AP Photo | Mstyslav Chernov

Eu sei que se trata de uma guerra e, por isso, o sofrimento e a destruição tendem a ser os tópicos principais. Também não acho que o jornalismo precise cobrir histórias bonitas e fofas para encobrir desastres, como chegaram a sugerir certa ala conservadora durante a pandemia. Todavia, sinto que, no caso deste documentário, falta um pouco de tato para conduzir a emoção, para ir além da filmagem e simples compilação temporal de tudo que foi gravado.

Peço licença para revelar um pequeno “spoiler” para exemplificar, já que uma cena quase no final do longa resume muito bem o que estou tentando dizer. Nela, um médico leva o diretor até o porão em que estão depositando os mortos e começa a abrir uma trouxa de roupas que é, indiscutivelmente, preenchida pelo corpo de um bebê. Mesmo diante de tal certeza, após mostrar pelo menos quatro crianças morrendo com alguma proximidade durante o filme, Chernov decide manter a câmera ligada até o corpo ser revelado de forma literal.

Será que era necessário? Será que cortar alguns segundos antes diminuiria tanto assim o impacto? Será que um quinto corpo infantil mostrado em detalhes é realmente importante ou está ali apenas para chocar?

É claro que, apesar dos pesares, podemos encontrar valor nessa proposta. Afinal, sua proximidade com as pessoas comuns proporciona a criação de um relato terreno que se abstém dos bastidores políticos para contar histórias que, sem a produção de 20 Dias em Mariupol, provavelmente permaneceriam desconhecidas. Já discutimos as consequências raivosas desse movimento, mas uma parte de mim acha válido vê-lo dar nome e voz a pessoas que não tem poder suficiente para deixar seus relatos e mensagens de indignação em outro espaço midiático.

20 Dias em Mariupol
Foto: AP Photo | Evgeniy Maloletka)

No entanto, esses pontos positivos dividem a sala com uma reportagem sensacionalista que, na maior parte do tempo, escolhe o choque pelo choque, apesar de ser muito mais poderoso quando foca justamente naquilo que as pessoas e o próprio documentarista desejam falar. Isso faz com que o filme pareça necessário e ganhe uma parcela do público no ineditismo do que estamos vendo, mesmo desperdiçando seu lado mais poderoso e se tornando mais fraco a cada reflexão.

Eu mesmo comecei esse texto muito mais dividido do que o termino. Em especial, por lembrar de como Chernov poderia ser um porta-voz muito mais interessante, caso deixasse seu papel ir além do autor de um diário preenchido por pensamentos soltos. Pensamentos esses que, mesmo funcionando como devaneios reflexivos, acabam dizendo mais sobre a guerra e o fazer jornalístico de que se coloca no papel de correspondente do que a violência em si.

A violência serve como uma ferramenta apropriada em um mundo movido por hiperestímulos, mas seu impacto é passageiro demais para realmente deixar marcas. Talvez Chernov percebesse isso, se deixasse a sensibilidade preencher algum espaço na narrativa opressora de 20 Dias em Mariupol.


20 Dias em Mariupol pode ser conferido em cinemas selecionados a partir de 07 de março, dias antes de chegar ao Oscar como favorito ao prêmio de Melhor Documentário.

20 Dias em Mariupol
Cartaz oficial de 20 Dias em Mariupol
4/10
Total Score
Total
0
Shares
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Previous Post

Tótem: Conheça o filme mexicano que era aposta no Oscar e agora está na Netflix

Next Post

Nas Brechas da Lei: Série indiana na Netflix é um clássico drama de tribunal

Related Posts