Suspense nacional com inspirações hitchcockianas, Tinnitus reflete sobre os sofrimentos que acompanham tanto a necessidade de redenção, quanto a obsessão do ser humano pela perfeição
Muita gente pode confundir o termo Tinnitus com um remédio tarja preta ou um pokémon lendário, mas, na verdade, esse é apenas um dos nomes de uma doença real. Também conhecida como tinido ou acufeno, a enfermidade começa com um som incômodo – semelhante a chiados ou zumbidos de abelha – dentro do ouvido e pode causar até a perda auditiva.
Entre as causas mais comuns do problema estão a exposição prolongada a ruídos acima de 85 decibéis, o stress constante, o excesso de cera no ouvido, alguns tipos mais graves de infecção e a idade avançada.
O zumbido tende a ser constante e incomodar muito, afetando o sono, a concentração e o equilíbrio emocional do indivíduo. Consequentemente, essa pessoa pode enfrentar problemas no convívio com outras pessoas tanto no trabalho, quanto nos ambientes familiares.
Antes que você feche esse texto por achar que abriu o blog do Drauzio Varella, acho importante revelar que essa é a realidade enfrentada pela protagonista de Tinnitus – um longa nacional que fez sua estreia mundial no 56º Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary e participou das seleções oficiais do 31º Festival de Biarritz, da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e do 50º Festival de Cinema de Gramado, onde foi premiado nas categorias Melhor Fotografia, Melhor Montagem e Melhor Direção de Arte.
Qual é a história de Tinnitus?
Marina Lenk é uma experiente atleta de saltos ornamentais aterrorizada por uma súbita crise de Tinnitus (representado por um zumbido insuportável que preenche a tela) que despenca da plataforma e acaba sendo obrigada a se afastar das piscinas de uma vez por todas.
Sem poder praticar o esporte que ama, ela passa a trabalhar como sereia em um aquário com pouco público e mergulha nas profundezas do seu próprio corpo. Será que é possível escapar da loucura quando o medo se esconde dentro de seus ouvidos?
O que achamos de Tinnitus?
Um Corpo que Cai, dirigido por Alfred Hitchcock e lançado em 1958, é um dos longas mais importantes da história do cinema. Um clássico que, além de ser reconhecido mundialmente como tal, serve como inspiração para todos os diretores que se aventuram pelos campos performáticos do suspense. Pelo menos é isso que diz uma antiga lenda do cinema…
Se essa afirmação é verdade ou não, vou deixar para vocês decidirem. Porém, posso colocar lenha na fogueira ao garantir com todas as letras que Tinnitus é um desses “filhos” de Um Corpo que Cai.
Também tem um pouco de Darren Aronofsky e outros diretores que já passearam por temas como obsessão, loucura e o peso de buscar incessantemente uma perfeição que, na maioria das vezes, já se tornou inalcançável. Seja por doenças, memórias dolorosas, relações que mexem com nossa percepção de mundo ou, quem sabe, pela ação inevitável do tempo.
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Gregorio Graziosi (diretor responsável pelo interessante Obra, em 2014) utiliza algumas dessas possibilidades no desenvolvimento temático de Tinnitus, cruzando-as por meio da vivência decepcionante de Marina no esporte, sua relação com a doença e as consequências da pausa inesperada. Ora é bom, ora não…
E, de fato, sempre que parei pra pensar no que atrapalhou minha imersão completa na história, o que surgiu na mente foi justamente o desenrolar um tanto truncado de tantas temáticas. Graziosi tem muito para dizer, mas sofre para selecionar seu foco e, com isso, dar contornos mais fluidos para a junção entre a história pessoal da protagonista, seus desejos escondidos e a busca não só por perfeição, como também por redenção.
Para exemplificar: o relacionamento de Marina com a nadadora que a substituí após o acidente (uma referência quase copiada de Cisne Negro) é um dos pontos altos do segundo ato, porém perde todo o seu peso quando a encenação passa a direcionar seu olhar não para a obsessão, e sim para uma necessidade de redenção que até então era menos do que um boato. É como se os blocos temáticos surgissem em cena e fossem retirados sem que os diálogos entre eles ganhem corpo.
No entanto, quando Tinnitus mergulha (com o perdão do trocadilho) no suspense sem vergonha de remeter a longas como Um Corpo que Cai, ele funciona muito bem. Em especial dentro do contexto visual e imagético.
A forma como o diretor inclui as metáforas na própria imagem, usando o espaço real e suas versões distorcidas para dar vida a sensações, gera momentos muito incríveis, incluindo um flerte inesperado com um body horror à la David Cronenberg ou Julia Ducournau. Meus destaques ficam para a escadaria assombrosa na competição japonesa, os closes sugestivos e os saltos sincronizados atormentados por esse zunido que também não abandona o espectador.
As cores pulsantes e os ângulos distorcidos demonstram o controle que Graziosi exerce sobre a mise-en-scène, a encenação performática, a profundidade de campo e o design de som. Tudo para criar um ambiente de loucura e desnorteamento que, no fim das contas, conecta o público minimamente à jornada de Marina.
Não posso negar, entretanto, que Tinnitus deixa um gostinho agridoce de quero mais, graças a essa dificuldade de fluir, tal qual a água que rege a vida da protagonista. Mas é um exemplar de suspense com tantos detalhes legais, que tem potencial para hipnotizar os olhares daqueles que conseguirem saltar lado a lado, em plena sincronia, com a vivência deturpada de Marina.