A Sindicalista | As engrenagens do silenciamento feminino

A Sindicalista
Foto: Divulgação / A Sindicalista

A Sindicalista é uma mistura de cinebiografia e thriller político que gera impacto, mas desperdiça a chance de ser uma obra ainda mais marcante


Nascida na Irlanda, Maureen Keaney sempre esteve envolvida – direta ou indiretamente – em causas sociais. Não é à toa que ela abraçou diversos conceitos feministas ainda na infância/adolescência, enquanto sua mãe participava de manifestações pela liberdade de Nelson Mandela.

Na década de 80, ela se mudou para a França com o marido e, pouco tempo depois do nascimento da primeira filha, foi contratada por uma empresa de energia nuclear para dar aulas de inglês para os funcionários contratados para trabalhar em estações fora do país. Nesse período, ela viu vários jovens serem demitidos sem qualquer compensação e decidiu usar sua argumentação para lutar por mais direitos para aquela classe.

Ela liderou greves, conduziu ações judiciais, alcançou posições de destaque dentro da organização e realizou inúmeras denúncias sobre corrupção e transferência ilegal de tecnologia para outros países. Essa última denúncia, inclusive, foi a responsável por mudar sua vida.

Na manhã do dia 17 de dezembro, sua casa foi invadida. Keaney foi encapuzada, levada para a lavanderia, ameaçada, espancada, estuprada e amarrada em uma cadeira onde seria encontrada pela empregada seis horas depois.

Esse é o ponto de partida de A Sindicalista, uma mistura de drama, cinebiografia e thriller político que foi exibida em Cannes no ano passado e indicada na categoria de Melhor Filme da mostra Venice Horizons, do Festival Internacional de Cinema de Veneza 2022.

A Sindicalista
Foto: Divulgação / A Sindicalista

Qual é a sinopse de A Sindicalista?

Baseado no livro A Sindicalista, da jornalista Caroline Michel-Aguirre, o filme acompanha a história real de Maureen Kearney (Isabelle Huppert), uma representante sindical que denunciou acordos secretos e abalou a indústria nuclear francesa.

Tudo muda quando ela é violentamente agredida em casa. Um ataque que parecia ser uma represália às últimas denúncias realizadas por Kearney ganha novas camadas e maior repercussão a partir do momento em que a polícia começa a vê-la como suspeita, e não vítima.

O que achamos de A Sindicalista?

Para remontar o crime e os eventos que o seguiram, A Sindicalista se divide – de forma bastante clara, inclusive – entre a atuação sindical de Maureen Kearney, a investigação do ataque sofrido por ela e os contornos políticos da energia nuclear na França, passeando pelo drama cinebiográfico, pelo suspense policial e pelo thriller político a cada ato.

Por conta dessa mistura, o resultado vai depender muito do quanto o espectador conhece a história real e do que ele espera dessa experiência. Eu admito que gosto de algumas coisas, mas desgosto de outras.

Gosto, por exemplo, de Jean-Paul Salomé (diretor e roteirista da obra) não esconder o crime ou tentar fazer mistério em torno do mesmo. Ele enxerga o ataque como um ponto de transformação na vida da protagonista e, por isso, inicia o longa nesse ponto para só depois nos conduzir ao passado de Kearney, focando logo de cara na atuação dela como sindicalista.

A Sindicalista
Foto: Divulgação / A Sindicalista

O passado irlandês, o casamento, a mudança de país, as greves anteriores não são o foco aqui. O objetivo é mostrar como ela se portava diante dos desafios, a frieza e a seriedade que tomavam conta de olhares ou gestos, e os embates construídos com o passar do tempo. Uma etapa que aproxima o público da protagonista ao mesmo tempo em que começa a construir uma lista de suspeitos, bem no estilo novela brasileira.

Esse é o gatilho que conduz ao segundo ato: a investigação policial.

Também é o momento em que A Sindicalista me perdeu, graças ao desenrolar corrido e raso desse lado policial. O sentimento é de que o longa abre mão da oportunidade de mergulhar no caso; de se embrenhar nas engrenagens corrompidas da empresa e do governo francês, como havia feito nos primeiros 30 minutos. Fica claro que existe alguma coisa ali, escondida nas sombras, para manipular o jogo, mas sem a abordagem direta e honesta de um diretor que abre seu filme com o crime central.

Eu entendo que Salomé está tentando construir um senso de dúvida que será decisivo na segunda metade do longa, afinal o que a investigação deseja fazer é corromper, perante ao público e à sociedade francesa, a imagem até então intacta de Kearney. Será que ela cometeu esse crime? Será que ela seria capaz de mentir sobre algo tão brutal?

A atuação divina e pouco expansiva de Isabelle Huppert (Elle) é essencial nesse ponto. Seu olhar profundo, frio e, muitas vezes, vazio ajuda a alimentar a dúvida na mente do público, porém o outro lado dessa maquinação é falho. É como se Huppert tivesse que carregar nas costas não só as emoções complexas de sua personagem, mas também o trabalho policial.

As mudanças bruscas de opinião e a fragilidade das argumentações construídas em cena prejudicam A Sindicalista no pior momento possível: a transição para um terceiro ato onde mergulhamos de cabeça nos thrillers políticos.

Leia também: Crítica de Viajando com os Gil, série documental que acompanha a turnê de Gilberto Gil e sua família pela Europa

A Sindicalista
Foto: Divulgação / A Sindicalista

A Sindicalista assume o protagonismo para não enlouquecer

Quem já viu outros thrillers políticos, sabe que o gênero concentra seus holofotes nos bastidores da corrupção ou de revelações políticas, acompanhando, em muitos casos, pessoas perseguidas por conta das respostas que possuem ou que entram em paranoia por não saber como colocar tudo que sabem pra fora.

Em A Sindicalista, temos um gostinho dessa perseguição com o crime e cobertura midiática – pouco mostrada – da transformação de Kearney em suspeita. Mas o foco recai de verdade no isolamento autoimposto da personagem. Enquanto o público está se perguntando “quem cometeu o crime” e “por quê?” (principalmente no caso da protagonista ser de fato a culpada), ela começa a definhar dentro de sua própria existência.

O olhar de questionamento do marido, o medo de sofrer outro ataque, o silêncio repentino… As consequências do trabalho realizado pela polícia não carregam consigo nenhum pingo de certeza, porém tem força suficiente para silenciar Kearney. Para impedi-la de prosseguir com a denúncia ou qualquer outra atividade.

Não é uma história tão direta de espionagem ou paranoia, mas flerta com o thriller político durante essa jornada de redescoberta que funciona graças à atuação mais uma vez brilhante de Isabelle Huppert. Uma comunhão que ganha ainda mais força depois que os tribunais entram em cena.

A forma ardente como Huppert quebra a casca da dubiedade e começa a investigar o caso por conta própria não só me trouxe de volta para a imersão, mas também reacendeu a crença em torno da personagem. Em conjunto, Salomé também retoma as rédeas do projeto e filma essa busca incessante com o vigor que merece, afinal é o tão esperado comeback de sua protagonista.

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Foto: Divulgação / A Sindicalista

Por mais que o roteiro não ofereça uma reviravolta clássica, o que vemos é uma virada espiritual na trama de A Sindicalista.

Assim como aconteceu com outras mulheres na história (recomendo o curta sobre Martha Stewart disponível na Netflix), Maureen Kearney estava sendo silenciada simplesmente por ser mulher. É doloroso ver policiais e juízes usarem o fato dela ter sido vítima de um estupro como arma de silenciamento, como algo que a transforma em culpada e automaticamente invalida toda a sua luta social.

Não é à toa que o ponto alto do filme é justamente o momento em que ela toma o protagonismo de sua própria história das mãos das instituições que queriam silenciá-la. Ela encontra uma maneira de virar o jogo, se colocar no centro dela e deixar claro que vai contar a história nos seus termos, sendo acompanhada por essa sacudida muito bem-vinda na mise-en-scène.

Só que, mesmo com todos os pontos positivos que compõem os últimos 40 minutos, o fato do segundo ato desenvolver mal as engrenagens acaba voltando para assombrar o thriller político. Digo isso porque o retorno sem fôlego de nomes citados no primeiro ato em conjunto com essa conclusão tão poderosa deixam um gostinho inegável de quero mais

Uma sensação de que A Sindicalista poderia ser uma das obras mais impactantes do ano (a história tinha potencial para isso), se tivesse investido mais no segundo ato. Se tivesse mergulhado no gênero para conectar as engrenagens e dar vigor para uma personagem que jamais poderia ser vista com indiferença ou fraqueza.


A Sindicalista está disponível em algumas salas de cinema selecionadas.

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