Culpa e Desejo quer ser um drama que borra a polarização moral, mas não consegue escapar da frieza de sua encenação
Em dado momento de Culpa e Desejo, a protagonista do longa profere a frase abaixo (não nas palavras exatas) para explicar a uma jovem cliente o que pode acontecer em um caso de abuso:
Algumas vezes, no tribunal, a vítima pode se transformar em ré.
Essa simples sentença (que fala muito sobre o julgamento por um viés mais social, buscando formas de culpar a vítima pela violência que sofreu) ganhou novos contornos quando uma pergunta surgiu na minha mente: “e o aconteceria caso a advogada se transformasse em culpada?”.
Esse pode ser o princípio, o meio ou o fim de uma discussão ética que Culpa e Desejo aborda por vários ângulos, flertando ora com um drama de costumes típico da França, ora com um melodrama meio naturalista que reconstrói a realidade por meio da poesia enquanto Catherine Breillat tenta se concentrar nas nuances mais íntimas do relacionamento.
Qual é a história de Culpa e Desejo?
Baseado no filme dinamarquês Rainha de Copas (2019), Culpa e Desejo acompanha Anne (interpretada por Léa Drucker), uma mãe bem-sucedida e advogada respeitada quando se trata de casos de violência sexual contra menores que coloca tudo em risco ao entrar em um jogo de sedução com Théo (Samuel Kircher), filho do casamento anterior de seu marido.
Aos poucos, ela engata uma relação amorosa que repercute tanto na sua carreira, quanto na sua vida em família, iniciando uma série de discussões e reflexões morais com potencial para abalar crenças consideradas imutáveis.
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O que achamos de Culpa e Desejo?
Eu não duvidei e continuo não duvidando do potencial reflexivo e dramático de Culpa e Desejo. Afinal é comandado por uma diretora experiente que domina a arte de contar histórias, entende os impactos do que deseja criar a partir da mise en scène (vide a ausência quase total de trilha sonora) e encontrou dois protagonistas com uma conexão muito forte nas figuras de Léa Drucker e o novato Samuel Kircher.
Duas forças da natureza essenciais em todos os bons momentos do longa. Seria absurdo não elogiar a decisão de manter a câmera estática em certas passagens, a forma como passeia (pontualmente) pelas perspectivas de outros personagens e o fato de largar os aspectos sensacionalistas em prol de um olhar íntimo e apaixonado. Algo que certamente afasta o longa de uma abordagem puramente polêmica e talvez ainda mais vazia.
No entanto, nada disso impede que Culpa e Desejo seja (ironicamente, considerando o título e até mesmo a temática) um dos filmes mais frios que assisti nesse ano. E esse sentimento vale tanto para o desejo, quanto para a culpa.
Por um lado, sinto que o desejo dos protagonistas nunca aflora, extravasa da encenação, criando justamente esse relacionamento gélido e um tanto quanto banal. Por outro, sinto que a frieza e o distanciamento acabam sendo tão grandes que nem mesmo a repulsa entra em cena.
Não que seja obrigatório sentir repulsa somente por conta da temática, mas é fato que a dicotomia entre culpa e desejo está ali, vagando sem rumo ou peso, desde o início. Talvez a vontade de focar menos nos detalhes polêmicos e mais nas sutilezas do relacionamento seja tão grande que acaba sufocando esse jogo ético que, querendo ou não, texto e direção propõem continuamente.
A questão é que nem mesmo essas nuances do relacionamento, encenadas pela perspectiva íntima, me encantaram. Existe poesia nos encontros ritmados pela respiração em êxtase, não nego, porém o todo é menos profundo que um pires. O relacionamento começa a tomar forma, se torna fato e ganha contornos de chantagem sem sair de um marasmo que chega a banalizar a relação como um todo.
Não foi uma análise simples, em especial por ser um filme cuja proposta é tocar em temas sensíveis sem escolher lados. Ou seja: no papel, madrasta e enteado são reféns de um sentimento fugaz e imparável, e não culpados pela entrega. É por isso que, o questionamento que coloquei na introdução fica sobrevoando a trama, surgindo pontualmente nas ações posteriores da protagonista, mas nunca vira um tema de discussão real.
Eu gostaria que o filme trabalhasse essas dicotomias morais e éticas com mais firmeza, porém não sou o autor. O problema maior – ao menos na minha experiência – é que não existe espaço para nenhum sentimento mais extremo, expansivo. O que pesa negativamente na construção dessa relação quente e impossível de conter.
A princípio, acreditei que faltam momentos de Léa Drucker que nos ajudassem a entender um pouco a personagem, na esperança de que assim fosse possível entender o que faz uma advogada especializada no assunto se entregar a esse relacionamento. Porém, eu estava errado… o que falta é um calor que conseguisse nos transportar para dentro desse relacionamento que existe somente nas palavras.
Os momentos finais até geram uma fagulha, mas temo que já estavam misturadas com o cansaço, o tédio e a fadiga. Infelizmente, a frieza já tinha congelado o meu coração de uma maneira que nem a culpa ou o desejo – até mesmo aquela expressada pelo olhar mais fulguroso ou por qualquer plano-sequência ao som de Sonic Youth – conseguiria aquecer…