Entre a loucura e a maternidade, Fuja brilha como um conto de fadas sombrio e angustiante
Todo mundo sabe que mães – principalmente, as de “primeira viagem” – possuem uma preocupação muito grande quando se fala em cuidar da criança. Tanto é que esse apego excessivo pode gerar graves problemas de independência do jovem no futuro, uma vez que esteve sempre acostumado a ficar por “debaixo da saia”.
Um exemplo bobo, mas muito ilustrativo, sobre essa relação, é o conto de fadas da Rapunzel. Uma bruxa sequestra a pobre menina e a aprisiona numa torre, com a desculpa de protegê-la da crueldade do mundo (Enrolados, animação de 2010, pode confirmar isso para mim). E “Fuja”, pode muito bem se encaixar nessa proposta. Mesmo com lançamento interferido pela pandemia e sendo distribuído através de plataformas de streaming, o filme faz bonito ao se aproveitar da ideia base do conto de fadas citado, colocando, é claro, um pouco mais de insanidade, suspense e agonia.
O que esperar de uma produção de Aneesh Chaganty?
Justamente algo para nos deixar na ponta da cadeira, como já tinha feito anteriormente em “Buscando…” (2018). E ele, mais uma vez, realiza tal feito com maestria, numa trama que pode parecer batida, mas brilha ao dar ênfase na verossimilhança.
Nela, acompanhamos Chloe (Kiera Allen), uma jovem aparentemente debilitada (desculpem-me se parecer rude, mas quando digo debilitada, é debilitada mesmo) que mora com sua mãe, Diane, vivida pela – incrível – Sarah Paulson. E é, basicamente, isso.
Interessante a forma como Aneesh conta sua história sem, necessariamente, precisar de muitos elementos. E isso facilita muito o desenvolvimento de personagens, que é o ponto central da trama. É dessa forma, que o espectador consegue simpatizar-se com cada um em tela, pois o tempo traçando um arco bem definido para cada um é melhor distribuído e aproveitado.
Desenvolvimento de personagens é o foco de “Fuja”. A condução da direção é tão precisa, que conseguimos sentir as dores e as dificuldades de Chloe. O início do filme já nos surpreende com a definição de trocentos distúrbios fisiológicos, dando um pequeno spoiler do que podemos ver.
Poucos minutos depois, vemos a cena que nos introduz a jovem, com seu dia a dia adaptado. Um simples recurso de analogia, que não precisa de exposições dramáticas, e valoriza a capacidade dedutiva do espectador. E esse modo “velado” e inteligente de apresentar informações percorre toda a trama. Por exemplo, quando Chloe quer saber a cor do comprimido de Trigoxina, e, em vez de dizer isso diretamente, a direção opta por cortar para a horta de Diane, que está pegando um tomate em primeiro plano.
O equilíbrio de Fuja é invejável! Quando mencionei a verossimilhança, não foi à toa. O fato de termos uma personagem com diversas limitações, inclusive motoras, já nos deixam angustiados. Como alguém pode tentar “fugir” de uma situação insana, portando tantas barreiras biológicas?
O roteiro de Sev Ohanian, juntamente com o diretor (eles também trabalharam juntos em Buscando…), sabe bem como aproveitar isso e não poupa esforços ao explorar as possibilidades mais impensáveis, mas que não desrespeitam as regras propostas pelo próprio universo do filme. A cena do telhado é um ótimo exemplo. É quase impossível de respirar vendo Chloe se arrastando pelo teto da casa, tomada pelo receio de cair e temendo a chegada da mãe.
O filme não esconde que Diane tem segundas intenções. Desde os primeiros minutos, suas expressões “carinhosas” revelam um propósito mais obscuro. Paulson, na verdade, já é especialista em colocar diversos sentimentos no seu simples sorriso de covinhas e no olhar penetrante que só ela sabe fazer – pense na veracidade de sentimento que essa mulher passa!
A questão é que não sabemos em que nível esse propósito está sendo colocado em prática. Por isso, quando o primeiro plot vem, relacionado à paralisia de Chloe, só nos resta arregalar os olhos frente à quebra dos valores humanos. E a reflexão pode ser mais profunda quando observamos o espaço em que a informação foi dada; como as pessoas podem perverter o valor de cuidado com o próximo e transformar em atitudes absurdas.
O segundo plot de Fuja, no terceiro ato, além de nos fazer repensar toda a trama (já que nos foi passada uma outra ideia de história, moldada pela sequência inicial, no hospital) deixa-nos ainda mais certos de que quem está doente não é a personagem de Allen, já aproveitando para dizer que, não: não temos, aqui, alguém bobo que tropeçaria numa pedrinha enquanto fugia de um louco (apesar de achar que essa comparação não foi a mais apropriada). Chloe esbanja inteligência, algo que lembra muito Maddie Toung, em “Hush” (2016).
É muito interessante como ambas não se deixaram levar por suas limitações. Não são tomadas decisões malucas e contrárias às regras da “vida real”. Existe a dificuldade, o desafio. Sentimos a tensão da personagem, porque vemos ela penando para conseguir o que quer. E isso exige um esforço, um sacrifício, algo que o filme representa bem.
Com todos esses elementos em pauta, “Run” – que não pode ser traduzido literalmente, uma vez que já existe um filme com o nome “Corra!” (2017) – é uma ótima pedida para os aficionados por suspense, que ficarão em êxtase ao ver os rumos inteligentes tomados pelo filme.
Mesmo com um desfecho bem no estilo “não precisava disso, mas tá ok”, Fuja, que teve seus direitos comprados pela plataforma vermelhinha, faz seu nome e entra para a lista dos bons suspenses de catálogo e que valem nossa tarde chuvosa, na companhia de uma boa pipoca. Com altas doses de agonia, dúvida e veracidade, essa versão dark de Rapunzel, promete uma aventura única e desconfortante, extrapolando o limite da hiper proteção e da insanidade.
OBS.: Achei muito interessante o marketing do filme. Anunciaram o lançamento para o Dia das Mães de 2020. Nada mais apropriado! (Essa última frase contém ironia).
Fuja está disponível na Netflix
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