3% (1ª Temporada)

Você é o criador do seu próprio mérito?


3_onesheet_330_rgb_v7A Netflix foi criada como uma espécie de locadora delivery, se transformou ao notar o desaparecimento desse mercado e, como fruto do seu mérito, já ocupa um lugar de destaque no mundo inteiro, usando sua presença em mais de 190 países como lema. Atualmente, o Brasil é um dos maiores consumidores da plataforma, então era apenas uma questão de tempo até que o serviço de streaming investisse na produção nacional. Depois do ótimo longa O Roubo da Taça, os oito episódios de 3% chegam com uma temática incomum para o país, aspectos de muita qualidade e alguns erros de execução que prejudicam um pouquinho o resultado.

[Atenção: Esse processo tem spoilers. Sua única opção é continuar ou pedir pra ficar do lado de cá.]

Baseado em uma webserie que não foi para frente, o programa apresenta um país dividido em dois lados completamente opostos. A maioria esmagadora da população vive abaixo dos níveis de pobreza no lado de cá, enquanto a menor parte possui todas as tecnologias, regalias e benefícios necessários no Maralto (ou do lado de lá, como é popularmente chamado). A única forma de mudar sua situação social é completar 20 anos de idade e participar de um processo onde apenas 3% dos jovens são rigorosamente escolhidos para viver com a parcela rica da população.

É um conceito muito forte e – infelizmente – realista que também pode ser visto de formas parecidas em outras obras sobre futuros distópicos, como Jogos Vorazes, Divergente e os livros de George Orwell (o pai de todas as distopias). Ver a separação social ser estabelecida, conhecer as motivações separatistas da Causa e acompanhar as provas pode até deixar um gostinho de repetição na boca, mas o conjunto surge como uma forma bem brasileira de abordar temas atuais. No final das contas, uma das características mais importantes da ficção científica como gênero.

Para tecer sua análise sociopolítica, a mitologia de 3% se apoia em dois pilares principais que também podem ser facilmente encontrados na nossa sociedade: a meritocracia e uma lavagem cerebral digna de seitas religiosas. A primeira assume seu lugar desde a os primeiros minutos do piloto quando Ezequiel profere a frase que abre – com um pequeno toque de ironia – esse texto e ganha um plano de fundo enriquecedor quando cruza com o preconceito, a deficiência física, os abismos sociais, a manipulação de informação e até o estabelecimento de uma espécie de ditadura em uma das provas mais interessantes.

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Já a religião está escondida justamente nesse vestibular que direciona os merecedores a uma melhoria que nunca foi comprovada. Ou vocês acham que a última prova se chama ritual de purificação à toa? Os funcionários do Maralto nunca deixam de exaltar o misterioso Casal Fundador e deixar claro que o outro lado é a salvação eterna, enquanto os pobres competidores alimentam a imaginação e se contentam com essa fé que está posicionada entre a alienação e a falta de alternativas. Um deles aceitaria até comer merda, caso ela viesse do lado de lá.

Não ter nenhum vislumbre completo desse Paraíso faz falta em alguns momentos e pode não ser o suficiente para uma parcela do público, mas essa ausência foi a forma que o roteiro – comandado por Pedro Aguilera (Copa de Elite) – encontrou de igualar o ponto de vista do público ao dos participantes. Nós também precisamos acreditar cegamente que eles estão no caminho certo para compramos suas motivações, enquanto observamos quase todos os funcionários a partir de um contra-plongée que inferioriza os protagonistas. A câmera assume esse papel subjetivo com eficiência e também vai mudando, aos poucos, quando os escolhidos passam a ter relações mais amigáveis e horizontais com esses “seres superiores”.

Encabeçada pelo uruguaio César Charlone (diretor de fotografia indicado ao Oscar por Cidade de Deus), a direção dos episódios estabelece um plano de fundo bastante rico em camadas políticas nos dois lados, usa a câmera de mão com moderação e encontra uma trilha sonora que mistura música popular com toques futuristas. Os cenários também foram construídos com cuidado, a sede do processo apresenta um jogo de espelhos muito interessante e, apesar da simplicidade, as soluções visuais para representar as novas tecnologias funcionam.

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Infelizmente, isso não é o suficiente. A série não consegue se livrar vários problemas de execução que vão incomodando cada vez mais no decorrer da maratona. Eu acredito que o que o topo dessa lista é comandado pelo didatismo exagerado de alguns movimentos de câmera e de grande parte dos diálogos entre os responsáveis pelo processo. Os participantes não entenderem as motivações por trás de cada prova e gastarem tempo de tela nesse tipo de discussão é aceitável, mas ver os funcionários (que, teoricamente, já passaram por serem merecedores) pedindo pro Ezequiel bancar o Pedro Bial e explicar cada mudança óbvia feita no decorrer das provas é um pecado contra a interpretação do espectador.

A instabilidade presente no trabalho dos diretores mais novos também atrapalha um pouquinho, principalmente quando comparados aos episódios dirigidos pelo próprio Charlone. É um problema recorrente que fica visível em certas cenas filmadas de forma bem ridícula e nas atuações que também parecem estar em uma desnecessária montanha-russa de emoções. Nem todos os atores podem ser categorizados como bons e certas cenas parecem ter saído direto de Malhação, mas a falta de direção conta quando você percebe que até os ótimos João Miguel (Estômago) e Bianca Comparato (Irmã Dulce) não conseguem fugir de uma ou outra cena cafona.

destaque da série vai passando por todos competidores em episódios voltados para cada um e seria injusto dizer que as interpretações de Bianca, Rodolfo Valente (Sítio do Pica-Pau Amarelo), Michel Gomes (Última Parada 174) e Vaneza Oliveira decepcionam. No entanto, eles falham um bocado quando comparado ao trabalho brilhante realizado pelo já citado João Miguel. O seu Ezequiel é tão intrigante, ameaçador, manipulador, humano e cheio de conflitos que garantiu um episódio separado para deixar o ator brilhar ao lado de Mel Fronckowiak (Rebelde) e apresentar o seu desenvolvimento como chefe do processo. Ele se impõe diante de um conselho frequentado por monstros da televisão como Zezé Motta (Xica da Silva) e Sérgio Mamberti (Castelo Rá-Tim-Bum) e talvez seja por isso que eu fique tão incomodado com os conflitos criados pela fraquíssima Aline (Viviane Porto).

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As provas – que tem o selo de qualidade Big Brother Brasil – mexem com aspectos físicos e mentais de jeitos parecidos e muito assustadores, mas começam a cansar justamente por repetir os acontecimentos e pecar pela falta de surpresas. Em outras palavras, não adianta nada ser inventivo e sádico, porque desde os primeiros episódios já está pré-estabelecido que cada episódio vai se passar em torno de uma prova principal (ás vezes duas), um dos competidores vai se destacar com habilidades apresentadas nos flashbacks e os quatro protagonistas irão chegar até o final de qualquer forma. Inclusive, os melhores episódios surgem quando a série sai dessa caixinha confortável e padronizada. Temos o episódio focado completamente em Ezequiel e, a partir daí, parece que 3% engata uma sequência de episódios mais empolgantes e imprevisíveis.

É isso que sustenta a série até um final que promete algumas possibilidades interessantes, superando por um instante os constantes problemas de direção, o roteiro estruturalmente repetido, as atuações completamente instáveis e o didatismo que pode ser abolido depois de todas as explicações. É a chance que 3% precisa para manter as qualidades apresentadas até então, enquanto corrige seus erros para desenvolver melhor as diferenças no futuro dos protagonistas, explorar o Maralto como a sociedade complexa que deve ser, responder algumas perguntas pendentes e matar curiosidades que vão além do processo.

E aproveito para deixar um recado importante: ignorem as pessoas que insistem na síndrome de vira-lata em relação a produções nacionais e assistam com tranquilidade. 3% pode errar um bocado, mas essa temporada tem mais qualidades do que defeitos. Certamente não é a pior série da Netflix nem aqui, nem no Maralto.


OBS 1: Já estou torcendo pela renovação, principalmente pelo incentivo que isso pode dar para o mercado nacional. Bora Brasil!


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