A única pessoa no seu caminho é você mesma!
Thomas Leroy, em “Cisne Negro”
Que Darren Aronofsky não poupa esforços para debater temas polêmico em suas obras, nós já sabemos. O diretor de “mãe!” (2017) e do recente “A Baleia” (2022) é um dos mais bem-sucedidos de Hollywood e conta com uma filmografia repleta de obras intensas e alegóricas. E em “Cisne Negro“, realizado pelo cineasta em 2010, não seria diferente! A obra que concedeu o Oscar® de melhor atriz para Natalie Portman e recebeu diversas indicações em premiações, ainda desperta curiosidade e interesse do público, principalmente, por sua construção de camadas e o que nos é apresentado em cada uma delas, sendo até considerada uma obra-prima na carreira de Aronofsky.
E este será o filme da vez, num retorno mais que especial da coluna “Roteiro Ao Avesso“, com o filme de suspense dramático favorito do redator que vos escreve. Claro que é de praxe a presença de spoilers no texto, já que vamos dissecar vários simbolismos da trama. Então, fica a dica: para você que ainda não assistiu (o que eu poderia considerar como crime irreparável, mas irei deixar passar desta vez), volte aqui depois de ter seus neurônios danificados pelo espetáculo visual e visceral de “Black Swan“. O filme está disponível na plataforma de streaming Star+.
O NÚCLEO FAMILIAR COMO ORIGEM DO TRAUMA
Em “Cisne Negro“, acompanhamos a jovem Nina (Portman), uma bailarina esforçada de uma prestigiada academia de balé, que recebe o papel principal no novo espetáculo do clássico “O Lago dos Cisnes” reinventado pelo realizador Thomas Leroy (Vincent Cassel, de “Irreversível“, 2002). Porém, sua constante obsessão em mostrar-se perfeita, acaba levando-a ao extremo da exaustão mental e física, principalmente após a chegada da sedutora Lily (Mila Kunis, de “Oz: Mágico e Poderoso“, 2013; “Amizade Colorida“, 2011). Ao passo que a apresentação se aproxima, Nina fica cada vez mais preocupada com a sua entrega ao papel e a constante degradação de si mesma, temendo algo que parece fugir de seu próprio controle.
Antes de nos aprofundarmos nos aspectos psicológicos que envolvem a protagonista Nina, precisamos falar de algo importante que é, talvez, fonte de todo o trauma que testemunhamos no filme: seu núcleo familiar, no caso, sua mãe, Erica (Barbara Hershey, de “Retrato de Uma Mulher“, 1996). Não são dados muitos detalhes sobre o passado da mãe, mas o que se sabe já é suficiente para traçar uma linha de raciocínio pertinente. Erica foi uma bailarina frustrada em sua carreira, pois teve que abandoná-la para cuidar de Nina. E isso influencia o funcionamento mental distorcido de Erica com a própria filha, já que apresenta traços de superproteção, tal qual a bruxa do conte de fadas “Rapunzel“.
A tentativa desesperada de redimir a si mesma na vida da filha, faz a personagem de Hershey ser mais uma vítima do extremismo e da exaustão. Isso é refletido constantemente em suas ações excessivamente protetoras em relação aos horários de saída e chegada de Nina, ou sua dedicação no exercício do balé, ou até reforçando a característica da infantilização na personagem de Portman.
Um lar patologicamente instável gera indivíduos patologicamente instáveis. E tudo que nos é evidenciado sobre a relação abusiva e exageradamente polarizada entre Erica e Nina é completamente relevante quando se considera um quadro mental debilitado por parte da nossa protagonista.
O QUE É BELO E PERFEITO
A arte, por natureza, é contemplar o que é belo e exercer isso das mais diversas formas. E quando falamos de música, escultura, pintura ou dança, por exemplo, a concepção do que é “belo”, “culto” ou “perfeito” pode alcançar patamares desastrosos. Já que estamos falando sobre balé, permitam-me uma associação tendenciosa: os pés de uma bailarina são, dentro do estereótipo, feios e machucados. Mas, por cima das feridas e dos calos, veste-se uma singela sapatilha. Fina e perfeitamente costurada, pronta para realizar os mais belos movimentos. Dentro disso, qual o custo de se viver para a idealização do belo? Quais são os limites?
No mundo da arte, reforçar essa ideia pode ser muito perigoso. E para uma mente desequilibrada, como a de Nina, pode ser desastroso. A obsessão pela perfeição e para entregar o resultado mais excepcional possível pode deteriorar o mais puro dos corações e a mais forte das mentes. Não importa o quanto se tenha que sofrer; não importa o quanto tenha que se doar até chegar ao cansaço… o resultado precisa ser impecável.
Para Nina, sua vida é como seu pé dentro da sapatilha. Deve-se esconder a imperfeição, a emotividade, a fluidez, e dar lugar à técnica e ao esforço multiplicado. Mesmo que, de um tudo, nada tenha valor por ser forçado, como o próprio Leroy diz à protagonista quando veem Lily dançando certa vez. O belo, enfim, acaba perdendo seu sentido maior de encanto e envolvimento, e torna-se, apenas, um objetivo a ser cumprido, reduzido à uma perfeição inalcançável, mas, ainda assim, crível de que possa ser atingida. Custe o que custar.
A DISSOCIAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO DO “EU”
O objetivo aqui não é dizer se Nina possui ou não um transtorno mental. Por mais que existam centenas de artigos e trabalhos que evidenciem a natureza debilitada das mentes em “Cisne Negro“, não somos nós quem devemos dar o diagnóstico. Ele não fará, afinal, tanta diferença na concepção da alegoria como um todo. O fato é que Nina possui uma dissociação persistente e contínua de sua própria identidade, fruto de sua entrega excessiva ao papel como Rainha dos Cisnes, devendo interpretar as duas irmãs do clássico balé de Tchaikovski, Odette e Odile (ou, o cisne branco e o cisne negro, respectivamente).
O triunfo de Darren Arofnosky, não só em “Cisne Negro“, mas em sua filmografia como um todo, é em plantar a semente da dúvida pela linguagem da alegoria. Diversas vezes durante o filme, deparamo-nos com Nina experienciando psicoses que vão, desde visões de sua própria face em outras pessoas, até transformações antropomórficas (como descamações na pele e surgimento de asas de cisne enquanto dança). Se é real ou não, também não é o aspecto principal, embora há de se entender que grande parte do que a protagonista vê em relação à suas ações violentas e suas “incorporações” literais como ave são ilusões. Tudo é decorrente do único aspecto que caracteriza a decadência de Nina como personagem: a fragmentação.
Inicialmente, somos apresentados à uma Nina doce, meiga e virginal. Isso é evidenciado em seu quarto – rosa e repleto de bichos de pelúcia -, seu modo infantil de falar, sua pouca maturidade em lidar com o erro e sua dependência física e emocional da mãe, que reforça todas estas qualidades por comportamentos e expressões como o incansável “my sweet girl” (“minha garota doce”, em tradução literal). Tal forma de pensar e agir concorda veementemente com a áurea do cisne branco que precisa interpretar, mas não com a da gêmea oposta.
A ideia do doppelgänger (sósia do mal, ou gêmeo maligno) já foi amplamente abordada na literatura e no próprio cinema, como nos filmes “Nós” (2019), de Jordan Peele; ou “O Homem Duplicado” (2013), de Denis Villeneuve. Aqui, em “Cisne Negro”, a fragmentação de Nina se dá de forma subjetiva e psicologicamente catastrófica.
A personagem de Mila Kunis, Lily, é a personificação dessa dualidade que é própria da mente de Nina, e dela somente; sempre com figurinos em contraste, comportamentos aversivos e características erráticas. As duas personagens são os polos que competem espaço na mente em fragmentação da protagonista. Não é à toa, que o despertar da metade sombria de Nina se dá num ato luxurioso, não poupado, também, de eventos psicóticos, vendo a si mesmo no corpo de Lily, reforçando, assim, a ideia de que não é a personagem de Kunis em si, mas sim a forma mais plausível que Nina encontrou de tornar “real” a personalidade do cisne negro que agora aflora em seu corpo.
Luxúria, ousadia e impulsividade são os opostos que Leroy buscava despertar em sua aluna, utilizando caminhos condenáveis, como quando se insinuava sexualmente e a seduzia. Aos poucos, Nina desfaz sua personalidade meiga e ingênua – concretizada na emblemática cena do descarte das pelúcias –, e começa a se impor como uma garota crescida, de ações independentes e incomodada com os comportamentos super protetores da mãe, a ponto de enfrentá-la verbal e fisicamente como nunca havia feito. O cisne branco e o cisne negro estavam, enfim, despertos. Restava consolidá-los.
O FIM TRÁGICO E UM ÚLTIMO ATO INEVITÁVEL
“Cisne Negro” possui um último ato quase confuso, mas rendido à inevitabilidade do destino buscado por Nina. Chega a noite do espetáculo e nossa protagonista, atormentada e exausta, insiste em se apresentar. Dança belamente e encanta a plateia com sua Odette frágil e amaldiçoada pelo mal do mundo. Antes de se apresentar como a irmã maligna, Nina sofre outra dissociação psicótica em seu camarim, e talvez a mais simbólica. Mais uma vez, sua metade obscura é concretizada na figura de Lily, que insiste em tomar o lugar para conduzir o momento da melhor forma. Era para isso, afinal, que ela havia sido despertada. Nina, porém, num ato desesperado, não cede à fragmentação, mas faz pior: acolhe a dissociação. Ainda confuso, eu sei…, mas vamos lá:
Durante todo o filme, somos apresentados aos polos, aos opostos. Estes são incansavelmente reforçados, seja no “polo branco“, com as atitudes de Erica; seja no “polo negro“, com a perversão de Leroy e a inveja despertada por Lily. O tempo todo, somos apresentados a uma personagem que se fragmenta para atender à pressão de si mesma em ser perfeita para o papel. Ao “matar” Lily em seu camarim, Nina “assassina” – metaforicamente – a metade que esse tempo todo construiu. E, em vez de dar lugar à alternância e instabilidade de duas pessoas quase que distintas, ela acolhe as duas metades em si mesma.
Em síntese, a busca pela perfeição tornou-se obsessiva ao ponto de fomentar uma fragmentação da própria identidade; que levou, inevitavelmente, à dissociação do “eu verdadeiro”. “— É a minha vez!“, grita Nina enquanto espeta o caco de vidro na sósia, com uma raiva reprimida há tempos.
A ferida que Nina provocou em si mesma, seja ela metafórica ou não (afinal, o filme faz questão de deixar o final em aberto), é fruto de sua rendição a si mesma. Ao se apegar exaustivamente a um propósito desequilibrado, concordou com ações e comportamentos doentios, que sangram tão rápido e são tão dolorosos quanto um corte de vidro na própria barriga. A queda de Odette do penhasco faz alusão à queda de Nina na autodestruição. “— Eu senti… foi perfeito” diz a protagonista. A perfeição fora, enfim, alcançada. Mas sob um preço irreparável.
A forma como Ronald escreve seus textos sempre me mantém preso à leitura e interessado pelo conteúdo… Embora eu já tenha visto o filme algumas vezes, até fiquei com vontade de assistir o filme novamente.
Aguardo próximo Roteiro ao Avesso…