O Charlatão | Apenas um melodrama clichê

O Charlatão

O Charlatão começa como um bom retrato psicológico, mas se perde no meio de uma biografia padronizada


Jan Mikolásek é uma espécie de curandeiro tcheco que, após diagnosticar seus pacientes através da urina, oferece remédios naturais como opções de cura. Um personagem complexo e interessante que atravessou o século XX, refletindo assim, de diversas maneiras, os aspectos mais importantes da Europa daquele período.

Através de uma narrativa pouco linear que mistura realidade e ficção, O Charlatão (representante da República Tcheca no Oscar) tenta contar essa história cheia de opostos temáticos e conceituais. Alguns deles presentes no próprio filme, e outros que ressoam apenas na audiência.

O próprio Mikolásek é um grande detentor desses contrastes. Ele vive entre a verdade e a mentira; entre ser uma pessoa boa que atende todos sem discriminação e um ser humano tóxico e possessivo; entre o amor constante e ataques de raiva que afetam qualquer criatura indefesa.

Um jogo de antagonismos complementares que, por motivos um tanto quanto justos, também deixa o público dividido. Mas, nesse caso, ficamos entre a curiosidade de entender quem é aquele homem não complexo e o desejo de ver alguém tão odioso morrer da maneira mais dolorosa possível. 

Mas, apesar desse ódio crescente, nada disso pode ser considerado problemático, afinal um personagem pode ter todas essas camadas. Indo além, posso dizer que isso é até mesmo interessante, já que a vontade de decifrar as raízes de Jan, o que faz ele ser daquele jeito, alimenta a sessão.

O Charlatão

E, pra melhorar, quando esses detalhes conflitantes se chocam com a já citada história da Europa, o filme evolui de maneira ainda mais atraente graças ao tratamento dado pela direção Agnieszka Holland (Filhos da Guerra). Por exemplo: o romance entre o protagonista e seu braço direito é sensível e consegue fugir de alguns estereótipos comuns; e os paralelos políticos que igualam nazistas e comunistas através da brutalidade também me chamam atenção.

Uma série de bons acertos que, infelizmente, se perdem no decorrer do longa por causa de outros problemas. No entanto, dois deles acabam se destacando durante os 120 minutos de O Charlatão.

O mais latente toma conta principalmente do terceiro ato do filme, porque é nesse último terço que o bom estudo psicológico desenvolvido em cima de Mikolásek é deixado de lado, e no seu lugar surge uma trama de vitimização. A história de uma pessoa pobre e inocente que foi acusada por seus inimigos autoritários. Talvez ele não tenha cometido aquele crime específico, mas não seria necessário anular todas as camadas do personagem pra comprovar isso.

Algo que a frase final faz com uma perfeição que chega a entristecer. Dá até mesmo uma sensação de nostalgia, uma saudade da complexidade que preenchia o começo da produção.

Entretanto, a parte mais curiosa é que esse final conversa muito bem a segunda coisa que me incomoda: a maneira como O Charlatão se transforma, aos poucos, numa simples biografia padronizada. Ou pior, um longa conduzido pelo melodrama em seu formato mais clichê.

O Charlatão

Não estou dizendo que o filme não poderia ser um melodrama, porque ele poderia. O que destruiu minha experiência foi ver ele se definhar, saindo de um ótimo estudo psicológico sobre opostos para uma obra que não faz nada pra fugir desse jeitinho de biografia comum. E eu sinto que Holland faz isso por medo de se arriscar, visto que as complexidades do texto nunca são transferidas de verdade pra estética filtrada e limpa do filme.

Com isso o que sobra é um drama bobo que tenta deixar o espectador com pena sem oferecer muito conteúdo em troca. Tudo porque O Charlatão (ironicamente, o nome parece ter mais camadas do que a obra) é tão límpido e óbvio quanto a urina mais saudável que o protagonista já examinou.

Eu sei que a comparação é estranha e talvez um pouco esdrúxula, mas reflete muito bem um filme que exclui propositalmente todas as partículas que tornavam a urina importante para o protagonista. Em outras palavras: ignora que eram as partículas que transformavam, de um lado, Mikolásek numa referência, e de outro, O Charlatão num grande retrato social e psicológico com muito potencial.

Sem isso, ele acaba sendo apenas uma biografia comum. Muito bonita e bem filmada, mas unidimensional, genérica e sem graça.


O Charlatão foi conferido nas cabines de imprensa da Mostra de São Paulo 2020

 

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