Com um tato excepcional para narrativas viscerais, Robert Eggers apresenta para o mundo sua versão do clássico “Nosferatu“, que, segundo ele, é seu projeto dos sonhos. Dedicação esta que rendeu ao filme quatro indicações para a edição da premiação do Oscar® 2025, que desta vez (depois de muito tempo) deu voz e vez para alguns dos filmes de terror mais comentados e de maior sucesso deste ano.
Com um ótimo pano de fundo histórico e muito folclorismo gótico, nada mais interessante que nos debruçarmos sobre os símbolos deste trabalho criando uma conexão direta com o primeiro sucesso do diretor em parceria com a produtora A24, “A Bruxa“, de 2015, em mais um Roteiro ao Avesso.
Lembrando que este texto possui spoilers de ambos os filmes. “Nosferatu” ainda está em exibição nos cinemas de todo o Brasil, e “The VVitch” está disponível para aluguel no catálogo da Amazon Prime Video.
Crucifixos e alhos em mãos? Então, avante!

O BERÇO DA MITOLOGIA
Desde a antiguidade, nós somos regados por contos e mitos. Isso porquê existe uma tendência natural em se tentar compreender as coisas e o mundo ao nosso redor. Acontecia que, na ausência de um pensamento científico-racional, o mito era o que tomava as rédeas na explicação de tudo, mas a partir de uma visão fantástica, sobrenatural, muitas vezes de forma até sagrada. Não à toa, vemos culturas ricas em histórias e narrativas empolgantes sobre o princípio da vida e do universo, como a grega, a romana e indígenas.
O cenário muda, porém, com a chegada da filosofia, em que tudo passa a ser questionado e o pensamento lógico ganha força, abrindo portas para o desenvolvimento científico e para as grandes descobertas no futuro. Contudo, a mitologia nunca foi deixada de lado. Se num momento da história, a sociedade era mais suscetível a acreditar e criar narrativas épicas e sacras, na contemporaneidade esses simbolismos marcam a manifestação do inconsciente coletivo de forma mais velada, mas não inexistente.
Os contos de fadas são mitos, por assim dizer. Utilizam de uma linguagem fantástica para retratar uma situação que leva a um ensinamento, a uma explicação das coisas (no caso deste exemplo, para propagar uma ideia de comportamento esperado durante o desenvolvimento da criança, ou como é a vida real). Ora, se o homem está hoje numa posição em que grande parte do que se quer dizer e fazer vive no inconsciente, mitos são mais que uma resolução para tal, uma vez que essa linguagem proporciona o resgate necessário ao que não podemos dizer.
Por isso, pode-se afirmar que é incrível como Robert Eggers sustenta sua filmografia a partir desta ideia: a base é uma crença ancestral, uma ideia sobrenatural ou um relato mitológico (como em “O Farol“, por exemplo) regados de alegorias. Não à toa, a atenção ao detalhes nas narrativas de “A Bruxa” e “Nosferatu” é um espetáculo à parte. Isso porque o diretor tem muito mais a dizer do que o que está sendo mostrado em tela.
Eggers traz duas figuras fantásticas nesses projetos: a bruxa e o vampiro. Indo muito além de contar tais histórias a partir de uma perspectiva antes já vista, o diretor prefere se ater ao princípios sociais e psicológicos de cada criatura. Sua bruxa representa o amadurecimento frente ao reducionismo e o fanatismo puritano; enquanto seu vampiro é a encarnação do contraste enlouquecedor entre a repulsa e o desejo. Os dois, porém, possuem um elemento comum em suas narrativas que os une profundamente: o feminino.

CADA QUAL COM SEU BODE EXPIATÓRIO
Nova Inglaterra. Século XVII. O puritanismo era a realidade, por mais que estivesse quase encontrando seu declínio. Vindo do pensamento Calvinista e de influência reformista do Protestantismo, o movimento da “purificação” é o desenrolar histórico no universo de “A Bruxa”. Aqui temos uma família banida de um vilarejo por suas tradições fanáticas. Ao se estabelecerem próximos a uma floresta, o medo e a superstição tornam-se os sentimentos recorrentes dos dias, e a a ruína a herança das noites.
A estreia de Robert Eggers é um filme sóbrio, atmosférico e, quando falamos de interpretações, rico. O centro aqui é a personagem de Anya Taylor-Joy, Thomasin. O subtexto social-religioso faz com que a menina carregue, desde cedo, a culpa em seu próprio nome: Thoma-sin (do inglês, “pecado“). Ora, não é de hoje que a mulher é vista como o alvo de todas as mazelas.
Numa das publicações mais insanas da história da humanidade, o Malleus Maleficarum, ou, como ficou mais conhecido, Martelo das Feiticeiras, os monges dominicanos Heinrich Kraemer e James Sprenger dedicam uma questão inteira somente para dissertar sobre o porquê das mulheres serem as mais suscetíveis aos estímulos diabólicos, chegando a citar trechos da Bíblia fora de contexto que rebaixam a natureza feminina.
“Portanto, consideremos antes de mais nada às mulheres; e primeiro porque este
tipo de perfídia se encontra num sexo tão frágil; mais que nos homens.” – Malleus Maleficarum, Parte I, Questão VI.
Essa discussão sobre a superioridade masculina está longe de acabar, uma vez que o mundo se constitui de simbologias que enfatizam tais crenças desde que era mundo. O terror assume muitas formas, diz o slogan do filme de Eggers. E realmente o faz. Ao testemunhar o declínio de uma família exilada, vemos todas as personagens temendo o que eles acreditam habitar na floresta, no caso, uma bruxa, ao ponto de esquecerem os próprios preconceitos, obsessões e negligências, que, por sua vez, causam um mal muito mais palpável.

Pior é quando a descoberta da sexualidade, manifestada pela puberdade de Thomasin, chega para ficar. Se antes a ideia de bruxa era o mal encarnado em uma senhora velha e enrugada que voava numa vassoura, agora era em alguém jovial e sensual, rotulada por simplesmente estar se tornando uma mulher. Isto, porém, não é permitido. É vulgar. É inadmissível. É pecaminoso. E deve ser, a todo custo, repreendido, pois não é apropriado.
A partir de então, podemos notar que nunca foi sobre acolher e entender de onde vem a culpa; mas sobre encontrar alguém para culpar. Thomasin é, antes de tudo, um bode expiatório. O saco de pancadas de uma família e uma sociedade corrompida pela repressão; moldada por costumes limitantes e crenças exploratórias. “Você gostaria de viver deliciosamente?“, pergunta Black Phillip na cena final, enquanto nos atesta de que a liberdade é a chave para a resolução, para o triunfo na realização de nós mesmos como humanos.
A lebre, o corvo e o bode não representam somente a ideia típica do “familiar” na cultura ocultista. É, antes de tudo, a ilustração de uma natureza presente e instintiva, mas que não se rebaixa e enfrenta seu destino. Ao acolher sua identidade como “bruxa”, Thomasin não risca fósforo na própria fogueira, mas assume sua posição como transgressora, como à frente do seu tempo, livre de qualquer amarra.
Pronta para abraçar o que os outros, pela ignorância, outrora temeram.
ENTRE SANGUE E DESEJO
A crença em uma criatura sugadora de sangue já é antiga, com registros desde a antiga Babilônia, Síria, Egito, Grécia, Roma e China. Estamos falando, afinal, do medo do homem em perder a sua energia vital para o desconhecido. Para além de todas as modificações acerca da figura do vampiro, principalmente após a publicação de Drácula, de Bram Stoker, em 1897, temos uma semelhança: é um ser já morto, noturno, que se alimenta de sangue humano.
Como já entendemos, os mitos surgem como uma forma de manifestação do que indizível por estar no inconsciente. Pai da Psicanálise, Sigmund Freud transcende sua época ao dizer que o que for reprimido de forma indevida durante a infância, consequentemente se tornará neurose na vida adulta. E não coincidentemente, “Nosferatu” de Eggers se passa no século XIX, separado apenas por quase 700km do médico austríaco.
O que isso quer dizer?

A reimaginação do clássico filme Expressionista de F. W. Murnau não só retoma as ideias sobre sexualidade abordadas de forma mais singela (presentes até mesmo no romance gótico de Stoker), como abraça com unhas, capa e tudo. Ou vai dizer que você não notou a quantidade de vezes que a personagem de Lilly-Rose Depp aparece gemendo e suspirando nas cenas? Ou o Conde Orlok de Bill Skarsgård dando as caras completamente nu?
Quando falamos de Expressionismo, falamos de distorção, de dualidade. A fotografia do filme exalta as sombras e as silhuetas, “dividindo” suas personagens por meio de um jogo de luz que define apenas um lado de seus corpos ou rostos. Nada mais dúbio na humanidade do que o sexo, que até hoje continua a ser motivo de tabu. E se isso cair negativamente sobre uma mulher, certamente será tratado como delírio, doença ou, no contexto da época, histeria.
Orlok entra na história não como um antagonista ancestral ameaçando um grupo familiar na Alemanha, em 1838, mas como um desejo sombrio do inconsciente que ganha tamanha força a ponto de desestabilizar o presente e o núcleo mais importante da vida de Ellen, que vive com a angústia de não saber o que sente e para quem direcionar o que sente. Ela mesma confessa ao professor caçador de vampiros Von Franz, papel de Willem Dafoe, que, certa vez, havia sido encontrada nua por seu pai, mas logo tratou de condená-la. “Pecado, pecado… ele dizia“. Isso parece familiar?
O que os outros viam nela como melancolia era, na verdade, um reflexo de um passado traumático, originado pelo simples desejo de não ser só, mas demonizado como se fosse a pior coisa que poderia ter acontecido. Quando poderia ter sido entendido como… o simples desejo de ser humano. De ser alguém. De ser amado e compreendido. Mesmo que, para isso, a busca se estendesse para algo além do que é compreensível, uma vez que no mundo compreensível ninguém tinha isso a oferecer.

O MAL VEM DE DENTRO DE NÓS OU DE FORA?
A culpa pela submissão imposta une as personagens femininas de “A Bruxa” e “Nosferatu“. Se na história da humanidade a mulher foi subjugada e apagada, nos filmes de Robert Eggers elas são a chave. Thomasin é a sobrevivente em meio à ignorância e o fanatismo; Ellen é remissora pela entrega nupcial à sua natureza forçada a viver nas sombras.
Entre os princípios do Expressionismo Alemão e as entrelinhas da psicanálise vive algo comum: a vontade da manifestação. Nada é errado, ou vergonhoso. Não existe uma norma, um padrão… na verdade, existe um código que nos guia para uma vivência comum mais íntegra, mas que é comumente modificado para atender a determinadas expectativas. Ruim é quando isso isola, reprime e discrimina.
A lição destes projetos tão simbólicos de Eggers é que a necessidade de encontrar e entender a si mesmo é latente, e a mesma em mulheres e homens, devendo ser respeitada igualmente. Todos temos desejos, ambições, segredos e realizações. Mas não precisamos nos tornar monstros uns dos outros ao passar por cima disso.
Para que não precisemos jogar mais pessoas em fogueiras. Ou obrigá-las a drenarem a essência da própria vida.
E como sempre, um agradecimento especial à , também redatora do A Odisseia, Raíssa Sanches (@raa.sanches) que revisou este texto. Obrigado mais uma vez! S2
REFERÊNCIAS
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