Mindhunter está ficando cada vez melhor…

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A segunda temporada de Mindhunter é o fruto de uma complexa – e deliciosa – reunião entre mentes assassinas, implicações sociais e questionamentos internos.


Contando com os nomes influentes de David Fincher e Charlize Theron na produção, Mindhunter estreou sem muito alarde na metade de 2017, deixou claro que era uma série de suspense com muito potencial e, rapidamente, garantiu seu lugar na minha lista de melhores do ano. Agora, após uma longa espera de quase dois anos, ela retorna às telinhas com fôlego para manter seu posto, entregando episódios mais consistentes, personagens mais complexos e doses maravilhosas de tensão.

Para isso, a história da segunda temporada (que começa apenas alguns dias depois do ano de estréia) continua acompanhando a equipe de pesquisas responsável por entrevistar assassinos em série e desenvolver uma metodologia que leve a construção de perfis psicológicos. Tudo enquanto os agentes lidam com problemas pessoais, participam de investigações que exigem a aplicação de tais teorias e aproveitam cada espacinho deixado para crescer dentro do FBI. Inúmeras camadas que dividem o espaço embaixo dos holofotes e merecem ser exploradas com o mesmo foco.

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Silêncio na cela… Gravando! 

Por mais que o casos de assassinatos múltiplos estejam ganhando cada vez mais importância no desenvolvimento de Mindhunter, as entrevistas continuam sendo o seu fio condutor. É a trama que, querendo ou não, centraliza todas as histórias paralelas, reúne os três protagonistas de vez em quando e coloca as engrenagens para funcionar através das discussões teóricas, da relação com o novo diretor interpretado por Michael Cerveris (Gotham) e da seleção de possíveis casos ou entrevistas.

Inclusive, as entrevistas se destacam por serem momentos onde a série quebra algumas regras cinematográficas consideradas básicas por muitos especialistas. A ideia de que mostrar sempre é mais importante do que contar é a primeira que sai cena, já que as entrevistas nunca são acompanhadas por recriações visuais dos crimes. Algumas das cenas mais importantes de Mindhunter são construídas através de longos diálogos que mexem com a imaginação do espectador com o objetivo de prender sua atenção, brincando ainda com a ideia de que falas longas e complexas geram obras mais arrastadas.

Isso até pode ser considerado uma verdade na maioria dos casos, mas não se aplica a uma série que usa a linguagem cinematográfica com tanto primor. Mindhunter sabe o que quer fazer e como aproveitar as ferramentas disponíveis do melhor jeito possível.

Um processo que passa pela maneira como David Fincher (Garota Exemplar) e sua trupe de diretores conduzem as cenas, sabendo exatamente quando deixar a câmera parada, quando movimentá-la ou quando cortar para um ângulo bizarro; pelas atuações seguras de Jonathan Groff (Frozen), Holt McCallany (Sully: O Herói do Rio Hudson) e todos os outros atores responsáveis por dar vida a agentes e criminosos; e, por fim, pelo roteiro que passeia pela mente do criminoso através de diálogos vagos cujo o foco não é descrever detalhes, e sim levar o público para dentro daqueles momentos como se fosse uma espécie de devaneio.

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Basicamente as mesmas características que afastaram uma parte considerável do público que não estava disposta a assistir uma série policial sem violência gráfica, perseguições alucinantes ou tiroteios grandiosos. No entanto, esse ritmo construído com tanto cuidado é o que separa Mindhunter de projetos procedurais que surgem a cada mês na televisão aberta.

É o que diferencia a série, colocando-a num patamar onde é possível fazer com que uma simples conversa como Charles Manson (Damon Herriman, repetindo seu papel em Era Uma Vez em Hollywood) seja um dos pontos altos da temporada. Um patamar um tanto quanto bizarro onde o espectador sente falta da presença marcante de Cameron Britton (The Umbrella Academy) e seu Edmund Kemper em mais episódios.

É uma vibe parecida com a de O Silêncio dos Inocentes que coloca episódios, personagens e casos dentro do mesmo pacote. Não é a toa que, fora desse ambiente onde assassinos em série preenchem vazios existenciais, os três protagonistas seguem caminhos razoavelmente separados.

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Os dilemas de uma vida dividida 

Dessa vez, Bill Tench é o personagem que carrega a trama mais sofrida da temporada graças aos rumos que sua vida pessoal segue após seu filho adotivo, Brian, ser testemunha ocular de um assassinato bizarro na vizinhança. O caso, envolvendo uma criança de quase dois anos que foi enforcada por garotos mais velhos e depois posicionada em cruz pelo próprio Brian, lança a família em um turbilhão de emoções e questionamentos que ainda inclui visitas não tão desejadas de psicólogos e assistentes sociais.

Ao mesmo tempo, ele precisa viajar constantemente para lidar com entrevistas ou casos, liderar os agentes que continuam trabalhando no Porão e assumir a tarefa de apresentar o trabalho de sua equipe no lugar de um Holden sem nenhum talento quando o assunto é convívio social. Isso cria uma sobrecarga física e emocional que vai destruindo o personagem aos poucos até um final dramático que McCallany carrega com muita competência.

Mais do que isso, o ator aproveita o aumento do seu tempo de tela “individual” para mostrar todo seu talento ao lado de Stacey Roca (Ladies of Letters) e do quase iniciante Zachary Scott Ross. O relacionamento entre os três passa veracidade suficiente, o desenvolvimento da trama é interessante e Holt realmente domina o desgaste vívido por Tench. No entanto, vale destacar que são alguns fatores externos que acabam crescendo o peso desse plot, considerando que não deve ser fácil ver o seu trabalho com assassinos em série se aproximar do que está acontecendo com seu próprio filho.  É uma trama pesada e corajosa que pode ser muito importante para o futuro do personagem.

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A Escolha de Wendy 

Ao mesmo tempo, a Dra. Wendy Carr divide seu tempo sozinha entre a necessidade de assumir a dianteira em algumas entrevistas e um novo relacionamento. O primeiro aspecto é muito importante, porque a coloca na linha de frente da pesquisa e cria uma espécie de choque de realidade em relação a metodologia que ela vinha desenvolvendo até então. É o momento onde ela percebe que a missão de conquistar a confiança dos criminosos entrevistados passa por diversas fases que não podem depender exclusivamente de perguntas tabeladas. Depende da criação de alguma proximidade entre as partes, explicando até mesmo porque o Holden – com sua “pseudopsicopatia” – tem tanto sucesso nessa parte do trabalho.

Já a parte da sua sexualidade cai em uns clichês de romance que a colocam entre os elos fracos da temporada, apesar de revelar coisas muito importantes sobre a personalidade de Wendy e o que influencia suas decisões mais importantes. A questão é que, com exceção da sua última cena com Kay, a subtrama parece sair do nada para chegar em lugar nenhum. São cenas que só funcionam porque Anna Torv (Fringe) precisa de muito pouco para garantir o peso emocional de cada aparição de sua personagem em qualquer um dos cenários.

É claro que os dois focos trabalham com pontos interessantes que possivelmente terão importância no futuro de Mindhunter, mas os melhores momento dela continuam sendo as discussões teóricas que acompanham o antes e depois das entrevistas. Ou seja, não dá pra negar que, por enquanto, Wendy é a personagem que mais perde espaço quando a série abandona o porão e os microfones em prol da resolução de um caso gigantesco.

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A grande caçada de Atlanta 

Falando no diabo, finalmente chegamos nos famigerados assassinatos que ocupam a maior parte dessa segunda temporada de Mindhunter. Um caso assustador que diz respeito à morte de 28 crianças e jovens negros da periferia de Atlanta durante os anos de 1979 e 1981. Um caso que, mesmo sem receber o devido encerramento até hoje, merece ser a peça central que amplia os patamares da série e funciona como um palco onde Holden é obrigado a lidar com todos os encargos que acompanham o protagonismo de algo desse tipo.

Inclusive, não é nada aleatório que esse também seja o ponto onde a própria série deixa claro quem é seu verdadeiro protagonista. Lógico que Bill continua marcando presença no caso ao lado do ótimo Jim Barney (Albert Jones), mas ninguém pode tentar negar que Holden é o dono dessa subtrama. Ele é o encarregado do caso na maior parte do tempo, colocando sua presunção e suas ansiedades no centro de um arco que, além de transformar o personagem, ainda encontra tempo para deixar o espectador na ponta do sofá e ensinar lições sobre a impotência de nossas ações.

Tudo acertadamente apoiado num trabalho de direção que sabe extrair tensão do nada, nas composições impecáveis de Jason Hill (do documentário Fyre Festival) e na atuação cada vez mais fria, intensa e brilhante (merecedora de prêmios, na minha opinião) de Jonathan Groff.

Além disso, ter um caso que ocupa mais da metade do tempo bruto da temporada acaba aumentando a consistência da série em relação aos casos mais esparsados que preenchiam seu ano de estréia. Ainda que outros casos sejam citados com muita força, os assassinatos de Atlanta são aqueles que realmente ditam o ritmo com suas doses altíssimas de injustiça, politicagem e pressão social.

É um show de policiais que sequer visitam as casas dos desaparecidos em busca de pistas, políticos que preferem manter boas relações com a elite do que capturar um assassino e mais algumas decisões burocráticas que caminham contra a resolução.

É lógico que muitas dessas escolhas vindas de cima fazem sentido diante do caldeirão cultural prestes a explodir que se formava na cidade. A própria população já havia escolhido seus culpados, considerando tanto o racismo da KKK quanto o desdém dos policiais, e ter um agente branco falando de maneira taxativa sobre negros predadores não ajudava nem um pouco.

E não é aleatório que esse seja exatamente o ponto em que Mindhunter mostra todo o seu amadurecimento, apresentando tais aspectos sociais que envolvem um crime com muita honestidade e veracidade. Uma realidade sem heróis ou vilões pré-definidos que incomoda, machuca e influencia muito na maneira como os personagens (principalmente o Holden) enxergam o mundo.

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Uma espionada no futuro 

E, pra terminar, só temos que falar sobre mais um personagem que está correndo por fora da pista principal desde a temporada anterior: o serial killer conhecido como BTK. No entanto, esse segundo ano começa a deixar claro que ele está sendo desenvolvido nas entrelinhas para ser uma espécie de grande vilão numa possível última temporada de Mindhunter. Um pensamento que só foi aquecido pelo fato do personagem começar a aparecer no meio da trama principal através de algumas citações e discussões.

Na verdade, mesmo sumindo de algumas aberturas, o assassino já recebeu a honra de ganhar um lugar na lista de casos a serem resolvidos pela galera do Porão e virar até mesmo tema de uma entrevista curtinha com Kemper no quinto episódio. E, por mais solto que esse pequeno trecho pareça ser, seu conteúdo pode conter informações sobre a importância que o BTK teria para a equipe.

Observem, por exemplo, como Kemper fala que eles focam demais nas características de quem foi preso e ignoram aqueles que continuam escondidos na sociedade. Considerando que o BTK contradiz algumas das certezas perpetuadas por Holden, ele poderia ser esse adversário de luxo que sabe se disfarçar e não pretende ser encontrado.

Isso conectaria ele como o tema da temporada e, de certa forma, da série como um todo, oferecendo um senso de conclusão que me fez pensar em uma organização de três atos. No entanto, a busca pela essência dos crimes pode durar muito mais se depender do NTK assumir um posto como antagonista, já que sua prisão na vida real só aconteceu em 2005. Será que Mindhunter teria fôlego para acompanhar mais 25 anos de história até encerrar sua jornada pela mente dos criminosos?

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Levando em conta que a terceira temporada nem foi confirmada até o momento, vamos ter que esperar mais um pouquinho pra sanar essa curiosidade. Entretanto, seguindo o que foi estabelecido até aqui, podemos ter certeza que qualquer caminho vai levar Mindhunter para um mergulho cada vez mais profundo, completo e maduro pela mente dos assassinos, adicionando novas camadas aos personagens e aos crimes, aproveitando cada gota do primor técnico que acompanha o projeto e melhorando ainda mais algo que já está muito próximo da perfeição.


OBS 1: É impressionante ver como o Holden e suas falas pausadas estão se aproximando cada vez mais da linguagem que Kemper usa para manipular as pessoas. Seria esse um sintoma de psicopatia?

OBS 2: Pra ninguém dizer que a série não tem grandes perseguições, vou deixar anotado aqui que a sequência em que Holden corre para entregar uma cruz na passeata é uma das minhas favoritas nessa temporada. É um momento que mistura com brilhantismo a tensão crescente, os toques eletrônicos assustadores da trilha, a fotografia envelhecida e algumas metáforas relacionadas ao arco do protagonista. Espetacular!

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