I Know This Much is True | Emoções anestesiadas

I Know This Much Is True
Foto: Divulgação HBO

I Know This Much Is True tenta superar a apatia da quarentena com um conto sobre família e passados destroçados.


As emoções estão afloradas durante a quarentena. Uma pequena pesquisa no Google apresenta diversos relatos relacionados aos efeitos psicológicos do isolamento que estamos vivendo. O medo, a solidão, a instabilidade política e o afastamento de pessoas queridas podem gerar crises de choro, ataques de ansiedade e até mesmo momentos marcados por pura apatia. Como William Bonner ressaltou durante uma das edições do Jornal Nacional, é como se as pessoas estivessem se acostumando com o excesso de mortes e notícias ruins.

É muito provável que você, assim como eu, esteja sentindo alguma dessas consequências enquanto lê esse texto. Mesmo assim, imagino que você também possa estar se perguntando o que I Know This Much Is True tem a ver com tudo isso.

A relação é que, mesmo sem querer, a nova minissérie da HBO acabou estreando nessa época de anestesia coletiva em que nada parece ser tão doloroso quanto a realidade. Incluindo a história absurdamente sofrida de Dominick e Thomas Birdsey, irmãos gêmeos cujas vidas foram marcadas por lembranças traumáticas, doenças mentais e injustiças sociais.

Mas não se engane: isso não quer dizer que eu não gosto da série. Muito pelo contrário, é bem possível que I Know This Much Is True seja a produção da HBO que mais prendeu minha atenção desde Chernobyl.

I Know This Much Is True

Eu gosto da proposta e, principalmente, da maneira como a família Birdsey funciona como uma porta de entrada para Derek Cianfrance (Namorados para Sempre) retomar diversos temas que ocupam espaços centrais em seus longas anteriores. No melhor trabalho de sua carreira, o diretor e roteirista entrega um conto muito poderoso sobre as consequências que traumas do passado podem gerar.

No entanto, classificar esse como o trabalho mais interessante de Cianfrance não significa que a série seja fácil de acompanhar.

O desenvolvimento é relativamente lento (apesar de nunca ficar arrastado), as diversas linhas temporais se chocam sem explicações didáticas e o conteúdo se aproxima ao máximo das versões mais amargas do niilismo. É verdade que I Know This Much Is True não tenta enganar o espectador e deixa claro, desde o primeiro episódio, que ele está entrando num terreno permeado por discussões dolorosas, mas isso não diminui o peso da abordagem. É humanamente impossível passar por todos os capítulos sem ser afetado por esse pessimismo latente.

I Know This Much Is True

O que, na minha opinião, coloca esse projeto na frente de filmes como O Lugar Onde Tudo Termina e A Luz entre Oceanos é a maneira como o diretor conduz o público com a dose exata de sofrência e sentimentalismo. Ele passeia pelo passado, pelo presente e pela memória de seus personagens com extrema fluidez, se apoiando muito na fotografia envelhecida de Jody Lee Lipes (Um Lindo Dia na Vizinhança) e numa montagem disposta a criar os paralelos visuais mais incríveis. Alguns claros e diretos em relação ao seu significado, outros tão nublados quanto uma lembrança traumática.

É como se Cianfrance quisesse comprovar que situações traumáticas criam recordações dolorosas, ao mesmo tempo em que questionasse a confiança que depositamos na memória. Dominick, por exemplo, foi dominado pelo vazio das perdas que sofreu durante a vida e deixou que essa dor criasse uma versão mais cruel de sua infância. Nós somos afetados por esse ponto de vista, mas também somos constantemente alertados para o fato de que nem tudo é o que parece. Quem sabe Dominick precise que seu passado tenha contornos miseráveis para justificar suas atitudes…

Ou não…

I Know This Much Is True

Talvez você termine a série com uma interpretação diferente, considerando que tal processo é incentivado pela produção. Por mais que título da série seja I Know This Much Is True (“eu sei que isso é verdade”, em bom português), Cianfrance não está interessado em mostrar todas as verdades para o espectador. Ele quer contestar a confiabilidade da memória e para isso permite as lacunas de sua trama relativamente vaga sejam preenchidas por quem está assistindo.

Alguns podem até mesmo chegar a conclusão de que a obra não fala sobre nada. Eu acho que ela fala sobre muita coisa enquanto costura os fragmentos que compõe ema família destruída por traumas, dúvidas e escolhas regidas pelo ódio. É um estudo sobre homens aprisionados em suas próprias frustrações que percorre caminhos habitados por relações machistas, crenças que atravessam gerações, promessas não cumpridas e outras consequências que acompanham a necessidade de prosperar sozinho.

A relação entre todos esses temas não é tenta amarrar todas as pontas ou escancaras seus objetivos, mas, como eu disse, prende a atenção com eficiência. Uma missão que, para além do trabalho de Cianfrance, depende muito do trabalho altamente “premiável” de Mark Ruffalo (Spotlight). Ele equilibra introspecção e agressividade na construção desses dois irmão que, mesmo sem querer, buscam salvação para seus próprios tormentos. De uma maneira meio distorcida e tocante, ambos funcionam como rocha para o outro, seja assumindo a culpa pelas perdas ou lutando pela libertação da prisão.

I Know This Much Is True

“Ah, mas você disse que nada está te emocionando e agora disse que I Know This Much Is True é tocante. Como assim?”

É verdade. De fato nenhum dos momentos em que a série tenta arrancar alguma lágrima funcionou comigo. Mas digo isso com a certeza de que boa parte dessa ineficiência não pode ser depositada no projeto. Cianfrance não tinha como antecipar que seu ia sair no meio de um caos que parece mais doloroso do que qualquer sequência dramática, logo não merece ver momentos tão poderosos sendo julgados por fatores externos. Principalmente porque tais momentos me geraram reflexões que talvez fossem anuladas pelo choro.

A qualidade de uma obra não deve ser definida apenas pelo sucesso de suas tentativas de fazer chorar, então escolhi um caminho onde poderia ser honesto com a minha experiência sem ser injusto com a série. Afinal de contas, I Know This Much Is True deu o azar de me encontrar nesse momento de apatia, mas passa longe de ser uma série ruim. Ela cumpriu o que prometeu e me impactou de formas inesperadas. É uma indicação certeira para quando tudo isso passar, revelando a importância de algumas lições sobre perdão e conexão.

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