O Silêncio do Céu

O cinema brasileiro é um dos mais importantes da América do Sul e, apesar de ficar refém de produtos meramente comerciais, entregou muitas produções de qualidade nesse ano. Os filmes argentinos tem surpreendido muita gente com grandes diretores, atores e longas. Já o cinema do Uruguai começou a crescer e se destacar a menos tempo. Uma das melhores surpresas do ano, O Silêncio do Céu reúne o melhor da América Latina em uma produção com grife brasileira, estrelada por um argentino, filmada no Uruguai e dividida entre as duas línguas do continente.

Baseada no livro Era el Cielo, a história segue a rotina de um casal após o traumático estupro sofrido por Diana (Carolina Dieckmann) e acompanhado, pelo lado de fora, pelo seu marido, Mario (Leonardo Sbaraglia). Eles decidem não falar nada e acabam entrando em um jogo de mentiras e vinganças, enquanto o público vê o relacionamento dos dois ser deteriorado pelo silêncio.

O roteiro, escrito por Caetano Gotardo (O Que Se Move), Lucía Puenzo (Cromo) e Sergio Bizzio (autor do romance adaptado), é muito bem construído entre o drama e o suspense, abordando o passado e as consequências vividas por ambas as partes após o estupro. O foco principal está nas ações de Mario e esse talvez seja o único problema do desenvolvimento, visto que o drama de Diana pode ser considerado muito mais forte por grande parte do público.

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Mesmo assim os personagens são desenvolvidos com muita calma e o espectador consegue entender os dois com perfeição, sendo que a narração in off possui uma função decisiva nessa construção ao revelar alguns elementos importantes do passado sem precisar que as imagens reproduzam esses acontecimentos. Além disso, o fato de Mario ser um roteirista que tem medo de tudo (literalmente) cria muitas possibilidades para o texto, incluindo uma metalinguagem muito interessante e deixando o filme imprevisível em certos aspectos. Ele até tenta fugir da sua realidade com um personagem a parte, mas isso não quer dizer que ele vai vencer seus medos.

É uma história intensa e recheada de temas complexos que funciona como o suporte perfeito para Carolina Dieckmann (Laços de Família) e Leonardo Sbaraglia (Relatos Selvagens) brilharem. São atuações realmente silenciosas que passam os sentimentos (algumas vezes, contraditórios) com olhares e sorrisos, contrastando apenas com o trabalho de Chino Darín (Muerte en Buenos Aires), que troca as motivações de seus personagens por alguns exageros. Não é nada que atrapalhe o filme, mas eu não comprei que a relação do seu personagem com Diana estava ligada apenas ao irmão e fiquei um pouco incomodado por não entender suas verdadeiras motivações.

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Ainda assim, a maior estrela de O Silêncio do Céu é a direção do brasileiro Marco Dutra (do interessante terror Quando Eu Era Vivo). Ele tem um conhecimento gigantesco de linguagem audiovisual e o utiliza de uma forma impressionante para criar a tensão necessária para o longa. Tudo está ali para incomodar e deixar o público preso na poltrona, incluindo os enquadramentos milimétricos, o uso da câmera lenta, o volume dos efeitos sonoros que sobressaem os diálogos e os truques de fotografia do uruguaio Pedro Luque (O Homem nas Trevas). De um jeito parecido com os trabalhos de Denis Villeneuve em Os Suspeitos e Sicario, Dutra sabe construir o suspense de uma forma claustrofóbica e angustiante sem precisar apelar para grandes cenas de perseguição ou conflito.

Tudo voltado para chegar em um clímax que amarra as pontas soltas e deixa muito espaço para o espectador refletir, afinal o filme não é sobre o estupro em si ou sobre a vingança. Na minha opinião, tudo gira em torno do casal de uma forma que só eles podem quebrar o silêncio que envolveu a relação. É um final complexo e cheio de interpretações distintas que funciona perfeitamente para uma produção intensa, bem dirigida e cheia de atuações magníficas. É foda e entra facilmente na lista dos grandes filmes brasileiros que eu vi esse ano. Merece ser visto com orgulho do cinema latino.


OBS 1: Merecidamente, o filme ganhou os dois principais prêmios do juri do Festival de Gramado: melhor filme e o prêmio especial pelo domínio da construção narrativa e da linguagem cinematográfica.

 

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