Crítica: Cloak and Dagger é mais um acerto da Marvel na televisão

Ligeiramente fora do contexto bilionário de Hollywood, a televisão tem se revelado um bom refúgio para as adaptações da Marvel. Agents of S.H.I.E.L.D virou um campo de testes maduro e valioso ao longo de suas cinco temporadas, a Netflix tornou-se a a casa perfeita para os heróis mais urbanos e violentos da editora e, com isso, um mundo de oportunidades se abriram tanto em serviços de streaming quanto em canais fechados. Aproveitando justamente a pegada adolescente do Freeform (antiga ABC Family), Cloak and Dagger chega para mostrar que é possível assumir suas raízes sem perder a chance de oferecer algo mais.

A história – que, não se engane, sempre teve essa pegada mais juvenil no material-fonte – acompanha duas crianças que perdem entes queridos importantes e ganham super-poderes após a explosão de uma plataforma de petróleo bastante suspeita. O tempo passa, o mundo gira e o destino acaba os reunindo mais uma vez para uma jornada de autodescoberta que vai misturar poderes sem controle, vingança, heroísmo e todo o resto que acompanha a boa e velha adolescência.

Essa combinação entre história de origem e juventude se tornou uma fórmula de sucesso graças a ligação metafórica que o ambiente em questão permite fazer com a descoberta dos poderes ou a necessidade de assumir responsabilidades inesperadas, e os roteiros comandados por Joe Pokaski (CSI: Investigação Criminal) sabem muito bem disso. Tanto que eles não só abraçam as possibilidades oferecidas pela faixa-etária dos protagonistas desde os primeiros minutos, como realmente constroem esse background com o cuidado e a paciência necessárias. Observe, por exemplo, como os dois primeiros episódios se preocupam muito mais com o a rotina dos jovens, as aulas, a paquera e o bullying do que com a exibição aleatória de poderes.

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Mais do que isso, os poderes também são deixados em segundo plano quando o objetivo é criar outros ambientes que cercam ou vão eventualmente cercar os protagonistas. Mesmo quando a escola perde boa parte da sua participação em tela, Pokaski e seu time de redatores escolhem (corretamente) apresentar um contexto social e urbano cercado de preconceito, sangue, luto, violência, ganância e corrupção antes de descambar para o seu lado cartunesco e fantasioso. É um clima bastante realista que ajuda até mesmo na apresentação e no desenvolvimento dos personagens, já que seus dilemas e questionamentos são, antes de mais nada, verdadeiros e palpáveis.

Esse percurso acaba transformando a cidade em um personagem decisivo para trama e, mesmo que de forma inconsciente, ajuda bastante no equilíbrio entre a realidade e a fantasia que se misturam nas ruas cheias de mistérios de Nova Orleans. Um passado místico que a série acerta em adicionar aos poucos na composição dos personagens e no desenrolar da trama em si, permitindo que episódios situados quase totalmente em sonhos não soem deslocados e abrindo as portas para os poderes mostrarem seu valor para a narrativa na hora certa. Em outras palavras: a escolha dos cenários principais, o tempo de desenvolvimento de cada contexto e tudo mais se encaixam com perfeição nessa transição entre o real e o fantástico.

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Depois disso, apesar de manter os pés no chão na jornada dos protagonistas, Cloak and Dagger se permite usar as habilidades especiais de maneira mais exagerada e finalmente se assumir como uma série de super-heróis. Acaba errando quando adiciona novas utilidades para certos poderes sem nenhuma apresentação prévia, mas acerta em cheio justamente no contraste bem organizado do surgimento de dois heróis com o tal lado realista que move a suposta vingança de Tandy e Tyrone. E talvez esse equilíbrio seja o que eu mais gosto na série, justificando porque ela me conquistou desde a incrível sequência de abertura do primeiro episódio.

Esses dez primeiros minutos já exemplificam muito bem como a direção pode trabalhar os dois lados, mostram a versatilidade que pode acompanhar a falta de orçamento e destacam a importância (que só cresce no decorrer da temporada) da montagem. É ela que que fica responsável por dar dinâmica ao show, criando muitas das conexões entre os personagens com alguns truques de encadeamento e poupando o público de algumas doses de didatismo barato. O recurso mais odiado do entretenimento ainda marca presença no show, afinal estamos falando sobre uma série adolescente, porém vem embalado numa roupagem que mexe com as linhas temporais, cria antecipação em relação  alguns acontecimentos e permite certas sutilezas narrativas. Dois exemplos muitos claros surgem na explicação dos últimos passos da jornada do herói que rouba o penúltimo episódio, e a remontagem de todos os sacrifícios misticos realizados em New Orleans durante a conclusão.

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Por fim, tudo isso ainda ajuda – e muito – na construção dos personagens e automaticamente na atuação do elenco. O fato do público entender os dilemas, dúvidas e os objetivos de cada personagem, entre protagonistas e coadjuvantes, sem nenhuma dificuldade certamente facilita os trabalhos nem sempre impecáveis de Olivia Holt (Somos Todos Iguais), Aubrey Joseph (The Night Of), Gloria Reuben (Mr. Robot), J.D. Evermore (A Lei da Noite), Miles Mussenden (Stranger Things), Noëlle Renée Bercy (Jogos Vorazes: Em Chamas) e Emma Lahana (Supernatural). O desaparecimento injustificado de alguns personagens e suas posteriores reaparições ficam como um dos problemas que me incomodam nesse aspecto, mas o geral funciona bem para uma série com essas características.

E no meio de todos esses trancos e barrancos, o único escorregão que realmente me incomodou infelizmente veio na hora da tão esperada união dos poderes. Todo o desenvolvimento paciente e preparação do terreno são praticamente jogadas no lixo quando o que toma a tela é algo tosco, exagerado em termos de efeitos visuais e, principalmente, sem nenhuma emoção. Isso é imperdoável para um show que vinha acertando tanto no equilíbrio de suas partes, no entanto, na minha opinião, não tem força suficiente para destruir tudo o que foi tão bem construído. Invalida uma parte do trabalho e pode frustar uma parcela dos espectadores, mas ainda perde pro clima de urgência dos últimos minutos, pra química entre os protagonistas e, acima de tudo, o equilíbrio de contextos e temáticas sobre o qual tanto falei. Cloak and Dagger é certamente um acerto da Marvel na televisão!


OBS 1: O último episódio tem uma cena pós-créditos que já apresenta o antagonista do próximo ano…

OBS 2: A série faz algumas referências a Luke Cage, comprovando que está inserida no mesmo universo do cinema e da Netflix.

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