Crítica: Bohemian Rhapsody é um grande tributo a Mercury

Freddie Mercury é uma lenda. Uma daquelas que, graças aos excessos da fama, viveu menos do que deveria, mas que fez o suficiente para que a primeira frase desse texto se tornasse um fato incontestável. Em outras palavras: sua figura pode até não ser amada por todos, mas ninguém consegue discutir que suas composições, sua voz completamente fora do comum e sua energia no palco arrepiaram milhões de pessoas, transformaram o Queen na maior (e, arrisco a dizer, a melhor) banda de rock de todos os tempos e elevaram sua persona a ícone da cultura pop. Feitos tão incríveis que chega a ser surpreendente ver um longa como Bohemian Rhapsody demorar tanto para adaptá-los em uma cinebiografia cheia de música esplendor.

Diante de tantas histórias e momentos que seriam um prato cheio para o cinema, a trama escrita por Anthony McCarten (O Destino de uma Nação) decide focar seus trabalhos nas histórias que se encontram entre a noite em que Freddie conheceu seus futuros companheiros de banda e a marcante apresentação no Live Aid. Isso inclui, entre tantas coisas, a formação da banda, os primeiros discos, as relações pessoais do protagonista e o surgimento de algumas das músicas mais icônicas, como é o caso da canção que dá nome ao longa.

Uma quantidade tão grande de conteúdo que a maneira como Bohemian Rhapsody iria compilar tudo se tornou meu maior medo desde o anúncio da produção, principalmente quando pensava na dificuldade de misturar as histórias pessoais de Freddie Mercury e da banda em si. E, de fato, o roteiro cai em algumas armadilhas relativas a isso no primeiro ato e acaba criando uma certa confusão em torno do foco do longa, porém consegue organizar as ideias quando comprova – para si mesmo e para o público – que seria impossível falar de um sem abraçar o outro. Essa coexistência das histórias é tão importante que resulta na escolha de um grande show como clímax, deixando coisas importantes como a morte de seu suposto protagonista (algo que eu, pessoalmente, gostaria de ver por não conhecer todos os detalhes) reservado às “letrinhas miúdas“.

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Uma escolha que faz sentido dentro de certos aspectos, mas que, ao mesmo tempo, contribui para que o filme seja uma daquelas biografias que quase nunca mergulha de verdade na vida de quem foi vendido como seu ponto central. Não digo que o filme chega ao ponto de ser chapa branca porque fala sobre os principais demônios que atormentaram a vida de Freddie, entretanto apenas citar coisas relacionadas às drogas (algo que, para o bem ou para o mal, foi parte decisiva da vida do cantor) me incomoda um bocado. No entanto, esse é um erro frequente num gênero que lida com muita história sendo reunida em pouco tempo de projeção e eu até cogitaria relevar a maior parte deles, se o erro não persistisse o suficiente para se criar pequenos furos de roteiro.

A questão é são repetidas as vezes em que a dificuldade do texto de selecionar e organizar o que deve ser apresentado ao público deixa espaços em branco pela trama. Por exemplo: ver o protagonista recusar a proposta de um disco-solo porque a banda é sua família funciona graças a conexão instantânea entre os quatro membros, mas ver ele esbravejar o contrário cinco minutos depois sem que a rixa entre eles tenha recebido a devida atenção prejudica o desenvolvimento da trama. E, nesse caso, passa a ser mais um problema de incoerência narrativa do que de ausência de momentos que eu gostaria ver. Estamos falando diretamente do que Bohemian Rhapsody é; não do que eu, como espectador, queria que ele fosse.

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Pra piorar, o filme ainda sofreu com problemas de dbastidoresque podem –  ou não – ter influenciado nesse mesmo quesito. É um fato que o único nome creditado, Bryan Singer (X-Men: Apocalipse), foi afastado da produção antes do fim e substituído às pressas por Dexter Fletcher (Voando Alto), no entanto, ao contrário do que rolou com o filme da Liga da Justiça, a mídia nunca revelou o que cada diretor fez. E nesse caso, por mais que a produção esteja recheada de caguetes visuais típicos de Singer, o tom possui uma coerência bastante balanceada e as mudanças entre os dois não ficam tão claras. Isso não quer dizer, por exemplo, que algumas cenas não tenham ficado sem gravação nesse processo e prejudicado a conclusão do longa, mas significa que esse não é fator que mais incomoda no final das contas.

Na verdade, a direção – independente de quem seja o responsável – possui uma fluidez de câmera interessante e acerta principalmente na mise-en-scène dos números musicais. O que mais atrapalha o andar da carruagem em Bohemian Rhapsody não é esse aspecto, mas sim a união entre o roteiro desatento e uma edição problemática de John Ottman (um compositor reconhecido na indústria que trabalha como editor nos filmes do Singer). Ele erra a mão em alguns cortes que não fazem sentido, se perde em quase todas as transições que não foram pensadas desde o início e pesa a mão nas montagens musicais como recurso narrativo. Toda briga vira música, toda música vira um clipe ágil cujo objetivo é avançar a história e por aí vai de maneira exaustiva. E, mesmo que essa seja uma saída bastante comum no gênero, o resultado fica repetitivo aqui.

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Entretanto, se engolir esses pequenos problemas é o preço a ser pago para receber em troca a recriação de momentos tão icônicos do Queen, eu aceito a conta. A versão acústica de Love of My Life no Rio (mesmo sendo plano de fundo para outra coisa) arrebatou meu coração, as cenas das gravações das músicas em estúdio representam muito bem o que tornava a banda diferente do resto e a remontagem quase inteira do Live Aid, com direito a exploração de detalhes inesperados, é de tirar o fôlego. E são nesses momentos que o elenco rouba os holofotes de uma vez por todas, já que é a emoção e interação entre essas peças do tabuleiro que constroem a alma de Bohemian Rhapsody, mesmo quando o roteiro tenta atrapalhar.

Ver Brian May, Roger Taylor e John Deacon caracterizados – visual e musicalmente – com perfeição pelo trio Gwilym Lee (O Turista), Ben Hardy (Homens de Coragem) e Joseph Mazzello (Jurassic Park) é impressionante; entender a história por trás da relação entre Mary e o protagonista dá um significado muito poderoso às lágrimas derramadas por Lucy Boynton (Assassinato no Expresso do Oriente) no terceiro ato, transmitindo com sucesso essa carga para o público; e, pra completar, Rami Malek (Mr. Robot) está brilhante na pele de Freddie Mercury. Por mais que os números musicais sejam dublados, o ator faz um trabalho invejável de recriação de trejeitos, se garante como figura icônica e ultrapassa a linha da mera imitação quando conduz as partes mais emotivas do longa com a mesma eficiência. Vide a ótima cena em que Freddie revela ter o vírus HIV para a banda.

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E é essa força que, como eu disse, sustenta o longa. Bohemian Rhapsody passa muito longe de ser um filme perfeito do ponto de vista narrativo, mas ainda assim foi o filme que conseguiu me distrair completamente em um momento onde eu estava mal, acessou as memórias dos fãs de longa data com muita força (alô Will) e marejou os olhos até mesmo de alguém que foi criado ouvindo sertanejo e só conheceu o Queen a pouco tempo (eu de novo). É um filme que, apesar dos seus diversos erros técnicos, consegue impressionar, emocionar e atingir públicos diversos com uma intensidade digna da sétima arte. Afinal de contas, cinema é muito mais do que só técnica e uma crítica deve sim levar isso em conta. É por isso que, mesmo citando várias coisas que me tiraram do filme, eu não posso ignorar a imersão e a emoção que ele me proporcionou. Porque, acima de tudo, Bohemian Rhapsody empolga o suficiente para se transformar num grande, poderoso e merecido tributo a uma lenda chamada Freddie Mercury.


OBS 1: Não preciso falar que a trilha sonora é foda, né?

OBS 2: Só pra deixar claro, eu acho que a decisão de dublar as músicas é muito válida nesse caso, já que a capacidade vocal de Mercury não pode ser aprendida ou sequer imitada.

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