Triste e pessoal, Apenas Mortais é um drama chinês que acompanha o cotidiano de quem enfrenta uma perda gradativa
A nossa memória afetiva em relação ao cinema asiático costuma ser preenchida por filmes de artes marciais, monstros gigantes ou até mesmo a mistura de gêneros promovida por nomes como Bong Joo Ho. No entanto, o cinema de cotidiano, com toda a sua calmaria internalizada, também possui um lugar especial entre as produções do continente.
+++ Mães de Verdade, mais um filme asiático sobre o cotidiano na Mostra
Em Apenas Mortais, nós acompanhamos o cotidiano de Xia Tian, uma jovem que retorna para o apartamento dos seus progenitores com o objetivo de cuidar do pai com Alzheimer. Só que, além da rotina de cuidados diários, ela também precisa lidar com um possível romance, sua carreira profissional e tudo mais.
Partindo de uma tragédia anunciada pela presença de um funerário nas primeiras cenas do longa, Liu Ze (participante da sessão de Novos Diretores da Mostra) filma a jornada final de Xia Tian e sua família com precisão, sensibilidade e proximidade. Por mais que o longa seja a adaptação de um livro escrito por Li Yanrong, eu fiquei com a constante impressão de que aquilo já havia feito parte da vida dele. Tudo graças a naturalidade com que ela percorre o apartamento da família.
Talvez, em contrapartida, isso faça com que o filme adquira um tom novelesco meio repetitivo, porém justo, Afinal de contas, estamos acompanhando algo que faz parte da vida de muitas pessoas, principalmente quando se amplia a classificação da doença para “demência”. Um detalhe que ajuda a construir uma proximidade ainda maior entre o público e os personagens.
Um relacionamento desenvolvido através de uma mistura, no mínimo curiosa, entre sonho e realidade. Liu Ze casa muito bem as sequências mais poéticas e interpretativas com um realismo quase documental que ganha vida a partir dos longos planos-sequência dentro do apartamento.
Parece com Roma, mas, ao contrário da proximidade friamente calculada que Alfonso Cuáron injeta em seu longa (que eu também gosto, só pra deixar claro), Apenas Mortais preza por um realismo bem mais palpável. A câmera passeia sem muito ensaio, como se fosse um membro da família caminhando pelo apartamento, e transforma o espectador nesse personagem, puxando-o para um relacionamento bonito e devastador na mesma proporção.
Alguns diálogos expositivos dignos de Aguinaldo Silva e uma organização estranha das subtramas entram em cena para desestabilizar um pouco essa narrativa pura e sensível, mas, assim como a estética novelesca, não prejudica tanto assim o resultado final.
Admito que não gosto tanto assim do relacionamento da protagonista com o namorado da infância, porque não consegui sentir o mesmo grau de veracidade. Eles parecem ser só uma peça (importante) que se move pelo tabuleiro para mostrar os efeitos da doença fora de casa, porém, mesmo funcionando como um gatilho emocional para quem já precisou largar tudo para ficar com um parente doente, não tem a mesma força da trama principal.
Até mesmo porque é difícil superar o impacto oferecido pelas sequências com o pai. Conhecendo ou não um caso parecido, é muito duro acompanhar como cada membro da família reage à transição entre a situação complicada da abertura e as cenas finais.
O pai que, sofrendo com a sua “suposta” invalidade, chega ao ponto de tomar atitudes drásticas. A mãe que precisa lidar, diariamente, com o definhamento gradativo do amor de sua vida sem poder fazer nada. A filha dividida entre a esperança, o amor e os pensamentos sobre a paz que acompanharia a morte do seu progenitor. É tudo muito real e pesado.
Algumas cenas mais diretas acabam se destacando (vide o momento em que o pai se defeca), mas não se engane: os momentos mais simples também carregam muita emoção. Incluindo a inquietante e sutil sequência final, que flerta com a alegria de um reencontro feliz só para nos lembrar da forma mais dura possível que nenhuma memória feliz cura a dor. Estar do lado daqueles que amamos no caminho para o fim pode oferecer um alento, mas não vai mudar o fato de todos nós somos Apenas Mortais.
OBS: As imagens desse post foram gentilmente cedidas pela equipe do diretor, Liu Ze.
Apenas Mortais foi conferido nas cabines de imprensa da Mostra de São Paulo
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