Premiado no Oscar, Bela Vingança dividiu opiniões com abordagem ácida para temas complexos
As polêmicas envolvendo o estupro são cada vez mais recorrentes nos fóruns e assuntos da mídia. Desde escândalos comerciais até justificativas baratas, a cultura do abuso sexual tem se tornado, infelizmente, parte do cotidiano do brasileiro. Não é por acaso que muitos cineastas têm procurado mostrar a força feminina, destruindo o estereótipo da “mulher frágil e indefesa”. E nesse cenário, Emerald Fennell preenche Bela Vingança com sua percepção de retaliação de uma forma criativa e bem estruturada, mesmo quando não consegue fugir da generecidade do tema.
Vingança já foi palavra chave para diversas obras, e já foi explorada das mais diversas maneiras, cada diretor ao seu estilo. Quentin Tarantino traz sua “noiva” disposta e sedenta por sangue em “Kill Bill” (2003); Steven R. Monroe esbanja litros de sangue falso, degradação narrativa e clichês em seus filmes da série “Doce Vingança” (2010); e Emerald Fennell mostra seu valor com um retrato um tanto quanto diferente de uma trama que, em mãos não muito sensibilizadas, poderia se resumir em uma “mulher revoltada e amargurada, resolvendo suas tretas na base da violência”.
Na trama de Bela Vingança, conhecemos Cassie, uma brilhante ex-estudante de medicina que abandonou a faculdade depois de um evento traumático. Em decorrência disso, todas as noites ela vai até uma boate e se passa por uma “garota bêbada e indefesa” até que um homem se aproveite de sua situação “inconsciente” para fazer o que bem entender. E a partir disso, ela inicia seu projeto maior de retaliação contra quem, no passado, provocou um mal maior.
É interessante como o filme já começa com a personagem de Carey Mulligan em ação. E é interessante também como não é revelado o que ela faz com os homens aproveitadores. Aquela dúvida paira no ar, afinal Fennell, que também assina o roteiro, veio para mostrar que seu foco não são mutilações, nem sangue manchando roupas e paredes (mesmo que a cena inicial de Cassie comendo vorazmente um cachorro-quente seja bastante sugestiva). Talvez seja esse o diferencial da trama que, logo de cara, despertou o interesse da Academia, rendendo algumas boas indicações para o período de premiações deste ano.
Depois de ser apresentada a ideia-chave, a trama introduz-nos Ryan (Bo Burnhan), colega de Cassie no período da faculdade, que revela sempre ter tido uma atração pela protagonista. Por mais que esse tipo de relação seja previsível, bem como o “plot twist” que os envolve no terceiro ato, o romance serve como base argumentativa, principalmente para nos dizer muito sobre o arco da personagem de Mulligan.
Na metade do filme, é aberto um “parêntese” na história contada. Mas, ao contrário do que se pode pensar, possui um sentido mais profundo, uma vez que está relacionado com uma pequena pausa, um “momento de respiro”, que Cassie deu para si mesma antes de voltar com sua ideia de jogar com os envolvidos no trágico evento do seu passado. Este que, vale a pena ressaltar, não é lá muito original, mas possui força o suficiente para justificar o sentimento de indignação.
Não se pode deixar de destacar a originalidade com que a direção, mesmo com alguns pequenos deslizes, abordou os momentos de ação onde o plano de vingança é, finalmente, posto em prática. É um momento tão bem construído, que o espectador passa a torcer pela protagonista, uma vez que ela não cede aos clichês do gênero e é interessante o suficiente para despertar a empatia de quem assiste.
Exemplo disso é a cena de Cassie com a diretora da instituição em que começara o curso de medicina. Quando achamos que realmente algo de ruim pode acontecer, ocorre uma quebra de expectativa, mostrando que as palavras podem ter uma força muito maior do que imaginamos. Na verdade, em Bela Vingança, a “tortura” não é feita com instrumentos pontudos e cortantes, mas sim com palavras e argumentos. E Cassandra se mostra inteligente ao usar isso ao ser favor.
“Bela Vingança”, a princípio, risca tudo o que pensamos que possa ser, a começar pela paleta pastel colorida (que contrasta ainda mais na evidenciação do café onde Cassie trabalha) e o humor ácido, aplicado na medida certa, levando em consideração a seriedade do fato abordado como pano de fundo. Quase não se acredita que esse é um filme de suspense. Só mesmo quando assistimos, podemos ver o poder narrativo que nos é mostrado.
Já a trilha sonora, o que a define é a palavra “espetacular”. Anthony Willis fez um ótimo trabalho, com menção especial para a versão em violino de “Toxic”, da Britney Spears, que caiu como uma luva servindo de background nos minutos que antecedem o clímax.
“Promissing Young Woman”, no original em inglês, traz sua visão ácida e criativa sobre um tema denso e de muitas discussões sociais, com originalidade e doses certas de humor e suspense, levando a um final um tanto quanto inesperado e diferente, mas eficaz e inteligente, em decorrência das capacidades já explicitadas da protagonista. Mesmo deslizando na mesma casca de banana de muitos outros filmes genéricos, escorando-se na previsibilidade e em algumas decisões contestáveis, a trama ainda consegue fluir ao seu modo e contar a história que prometeu.
Ainda que não seja explicado o que realmente acontece aos homens que se aproveitaram de Cassie, no início da obra, passando uma sensação de vazio e “buraco” dramático, para o que é proposto, a Bela Vingança de Emerald Fennell consegue se resolver, acordando-nos para a realidade de que talvez um mal social possa estar se tornando algo “normal” e costumeiro, a julgar pela conformação da sociedade frente a tal problema que pode, sim, interromper vidas e sonhos.
Bela Vingança está em cartaz nas cidades onde o cinema está liberado. Se for assistir, siga todos os protocolos sanitários.
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