[Aviso: Esse texto veio direto do Mundo Invertido e tem diversos spoilers estranhos andando pelas linhas.]
O intérprete de Will Byers, Noah Schnapp, disse recentemente em uma entrevista recente que toda a equipe de Stranger Things acreditava, durante as gravações, estar produzindo “uma pequena série no vasto catálogo da Netflix”. A divulgação bastante simples, marcada por um único trailer na semana anterior à estreia, também parecia refletir esse sentimento até que o lançamento em si virou o mundo de cabeça pra baixo. Stranger Things foi devorada por milhões de pessoas, invadiu as redes sociais e se tornou um fenômeno mundial que pode ser facilmente comparado a Game of Thrones.
A consequência direta desse sucesso avassalador surgiu com a renovação quase imediata e uma pressão gigantesca que deixava algumas complicações nas mãos dos criadores da série. A principal delas, seguindo a regra das continuações, seria aumentar o escopo da série sem perder a identidade que tinha conquistado o coração dos fãs. Para os mais ansiosos, eu já posso adiantar – com muita felicidade – que a missão foi cumprida com muito sucesso.
Em primeiro lugar, os irmãos Matt e Ross Duffer (Wayward Pines) se concentraram em realmente ampliar a mitologia que cerca aquele universo e, consequentemente, a escala dos acontecimentos. Os cinco primeiros episódios (mais lentos, porém não menos importantes) colocam o espectador em um tabuleiro de xadrez muito parecido com o da primeira temporada, mas vão inserindo cuidadosamente novas peças, brincando com elementos sobrenaturais que renovam o suspense e, é claro, entregando algumas respostas ao passo que estabelecem uma quantidade ainda maior de mistérios. Esse movimento é muito importante, afinal precisamos lembrar que o texto não tinha como usar o sumiço de Will como um recurso barato que juntasse todas as pontas.
Em complemento ao ótimo começo de temporada, os quatro últimos episódios usam a típica reviravolta do meio da temporada para lançar o show em uma dinâmica muito mais sombria e intensa. É delicioso acompanhar Stranger Things finalmente entrar de cabeça no ambiente do terror, incluindo invasões a locais fechados, ilusões de ótica causadas por superpoderes, mortes sangrentas e até uma possessão digna de Invocação do Mal. E nesse ponto fica muito claro que boa parte das consequências estabelecidas aqui não teriam o mínimo efeito sem o ritmo e os ótimos diálogos da primeira parte. Ou alguém acha que sentiria pena do Bob sem todas aquelas cenas fofas dele com a versão feliz da Joyce?
No entanto, o que mais me agradou (como espectador e crítico) foi ver os roteiros dos Irmãos Duffer ficarem bem menos dependentes das referências à cultura pop da década de 80. A personalidade da série, sustentada por esse clima de nostalgia que sempre remete a Stephen King, continua intacta e os pequenos easter-eggs ainda estão presentes em quantidade suficiente para gerar outro post especial, porém a trama dessa temporada não precisa mais usar esse contexto como uma muleta para evolução das tramas. Elas andam com suas próprias pernas, movidas pelo crescimento da mitologia e dos personagens – com suas respectivas relações – que continuam ocupando um espaço central na série.
A amizade dos garotos (com a ótima adição de Mad Max) e as diversas relações familiares que permeiam os núcleos ainda são a principal força motriz dos principais plots de Stranger Things. É incrível que, mesmo quando eles estão separados em grupos menores, os melhores momentos da temporada venham justamente dos diálogos honestos entre Mike e Will, da insistência do primeiro em encontrar Eleven, da ligação verdadeira que a menina com superpoderes estabeleceu com os garotos, dos triângulos amorosos banhados por crescimento pessoal ou das cenas que abusam do amor de Joyce – e Jonathan – por Will. E isso só melhora com a possibilidade de quase todos os protagonistas terem seus próprios arcos narrativos, já que, como eu disse, a trama não precisa girar apenas em torno de uma pessoa.
Obviamente todas as tramas vão eventualmente ser reunidas em um final avassalador, mas, até a chegada desse momento, todos os protagonistas (segundo os produtores, são treze) evoluem muito mais do que na temporada anterior e terminam os nove episódios diferentes de como começaram. Dustin, por exemplo, aprende sobre lagartos, garotas e cabelos em uma parceria inusitada com Steve, enquanto Will precisa lidar com as consequências do seu desaparecimento, tendo ao lado um Mike que precisa aprender a lidar com seu senso de heroísmo. Fora do núcleo infantil, Nancy descobre um pouco mais sobre sua própria personalidade, Joyce encontra um pouco mais de leveza por algum tempo e Hopper precisa desenferrujar suas habilidades paternas. Até Eleven entende que precisa trilha um caminho só seu antes de encontrar um lar verdadeiro, brindando-nos com um grande episódio-solo.
E, comprovando a capacidade textual dos roteiristas, o mesmo também pode ser dito sobre os novos personagens. Max – que já se tornou uma das minhas personagens favoritas – chega roubando a cena, mas se revela uma personagem frágil que precisa fazer amigos e criar coragem para sair de uma relação abusiva com seu irmão. Mesmo certos personagens que não possuem arcos dramáticos tão definidos (como Steve, Bob, Murray, Dr. Owens e Kali) tem papéis fundamentais para o desenrolar da temporada e ganham a atenção do público com muito carisma, subvertendo expectativas e fazendo parte de alguns momentos incríveis.
Uma parte disso só acontece graças as altas possibilidades de identificação entre o espectador e, pelo menos, um dos heróis, com seus dilemas, características, dificuldades e tantas outras coisas que fazem parte da vida real. A outra parte vem acompanhada de um elenco ainda mais certeiro, considerando a ótima escolha dos novos nomes e a evolução dos rostos conhecidos. Millie Bobby Brown (Godzilla: King of Monsters) e Noah Schnapp (que conseguiu me arrancar uma lágrima) são os exemplos perfeitos desse crescimento como atores. Finn Wolfhard (It – A Coisa), Caleb McLaughlin e Gaten Matarazzo não evoluem tanto, mas conquistam mais espaço para brilhar e manter sua química incrível. Natalia Dyer, Charlie Heaton (X-Men: Novos Mutantes) e Joe Keery (Molly’s Game) seguem esse último exemplo, enquanto Sadie Sink (O Castelo de Vidro) e Dacre Montgomery (Power Rangers) chegam com um fôlego invejável.
Do lado adulto, os destaques continuam sendo Winona Ryder (Drácula de Bram Stoker), David Harbour (Hellboy) e Randy Havens (Archer), mas não podemos ignorar as ótimas adições de Sean Astin (Os Goonies), Paul Reiser (Whiplash: Em Busca da Perfeição) e outros pais de família. Mesmo com pontas bem menores, Cara Buono (Person of Interest), Catherine Curtin (Orange Is the New Black) e Cynthia Barrett (Halt and Catch Fire) aproveitam seus momentos como as mães de plantão.
Além disso tudo, pra completar o pacote de uma temporada praticamente perfeita, os aspectos técnicos e visuais de Stranger Things tiveram muita evolução de um ano para o outro. A direção de arte fica cada vez mais detalhista (o fliperama e a casa do jornalista são shows à parte) e colabora demais na construção do clima que a temporada pede, os efeitos especiais são usados com mais frequência e melhor qualidade e os diretores parecem estar ainda mais inseridos no ambiente da série, incluindo os novatos. Os Irmãos Duffer e o produtor Shawn Levy (Gigantes de Aço), que comandaram todos os episódios da primeira leva, dividem a cadeira de capitão com Andrew Stanton (Wall-E) e Rebecca Thomas (A Fita Azul), adicionando novos temperos à linguagem cinematográfica da série.
E como se nenhum desses gigantescos elogios fossem o bastante, Stranger Things encerra sua temporada com um dos melhores episódios lançados em 2017. Com um ritmo invejável e diversas cenas de tirar o fôlego, a produção consegue mexer emocionalmente com seus espectadores, concluir todos os arcos de personagem sem nenhuma falha, deixar um gancho digno e entregar tudo que o público queria ver em termos de ação, terror, comédia e romances. Como eu nunca conseguiria entregar um final de texto com tamanho impacto, vou apenas dizer que a série atingiu seu ápice, consertou os poucos problemas que me incomodaram no seu ano de estréia e gravou seu nome como um dos grandes eventos do ano. São nove episódios consistentes que merecem ser vistos e revistos – sem nenhuma dó – para dar continuidade ao fenômeno.
OBS 1: Recomendo que, após a maratona da temporada, vocês também assistam o especial chamado Beyond Stranger Things. É uma série de sete episódios (entre 15 e 22 minutos) que discute os bastidores e os segredos da séries em mesas redondas comandadadas por Jim Rash e ocupadas por elenco, criadores e produtores.
OBS 2: Esse especial com as discussões revelou o quão parecidos os criadores são de seus personagens, escancarando a realidade que também os aproxima do público em si.
OBS 3: Eu, particularmente, tenho um pouquinho de cada um dos quatro garotos e uma boa dose da insegurança do Jonathan. Então, nesse caso, minha vida escolar teria sido muito mais fácil, se tivesse aparecido uma Nancy para dizer que tudo ia dar certo.
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