A Noite Americana (1973)

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“A Noite Americana” é uma das mais impressionantes e completas homenagens já feitas ao cinema. Homenagear e referenciar a sétima arte já não é mais um fato raro, mas, mesmo com a passagem do tempo, nenhum outro filme mostrou com tantos detalhes a produção de um filme ou levou a metalinguagem tão longe.

Esse belíssima obra, que venceu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1974, é de autoria do diretor, roteirista, produtor e ator francês François Truffaut, que foi indicado ao Oscar de melhor diretor pelo mesmo filme. Mesmo tempo uma vida conturbada, principalmente na infância, Truffaut sempre foi acompanhado de perto pelo cinema. Apaixonado por filmes, trabalhou como critico em diversos jornais e se tornou famoso por ser um dos criadores da Nouvelle Vague, um dos principais movimentos do cinema mundial.

Foi nesse contexto que François conheceu Jean-Luc Godard (diretor que rompeu sua amizade com Truffaut pouco antes da produção de A Noite Americana, mas mesmo assim foi homenageado no filme), viveu seus momentos de glória e produziu suas principais obras. Dentre as principais características do movimentos e dos filmes dele estão a produção barata e intimista, as muitas filmagens externas e a defesa de um cinema intransigente e autoral.

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De fato, todas essas características podem ser observadas tanto em “A Noite Americana”, que é dirigido, roteirizado e produzido pelo autoral Truffaut, quanto em “A Chegada de Pamela”, o filme falso que é produzido dentro do primeiro. O diretor é tão autoral que ele mesmo atua no filme interpretando Ferrand, o diretor do filme falso.

Mas eu falei tanto do diretor que esqueci de explicar a história do filme. A Noite Americana (ou Day for Night, que é o nome de uma técnica de filmagem explicada dentro do filme) conta a história da produção completa de um filme, chamado “A Chegada de Pamela”. Nesse contexto, o espectador pode acompanhar as dificuldades de uma produção cinematográfica, os bastidores, as relações entre o elenco e até alguns pontos da pós-produção.

O roteiro é muito inteligente e aborda a produção do filme em todos os seus quesitos de uma maneira simples e natural. Vemos o produtor do filme lidando com problemas normais em uma produção até hoje, como a morte de um dos atores principais (um exemplo recente é a morte de Paul Walker, um dos protagonistas da franquia Velozes e Furiosos). Também vemos o trabalho do diretor ser estudado com maior profundidade, já que acompanhamos o mesmo lidando com seu elenco, definindo ângulos e movimentos de câmera, escrevendo cenas em cima da hora, preparando efeitos práticos para lidar com a falta de verba (olha a Nouvelle Vague aí…) e até estudando sobre outros diretores, como Alfred Hitchcock, Howard Hawks, Luis Buñuel, Ingmar Bergman e o já citado Godard (este também também já dirigiu um filme metalinguístico chamado O Desprezo).

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O interessante é que todos esses nomes famosos, junto com Fellini e Orson Welles (retratado em uma linda cena que reverencia Cidadão Kane e Os Incompreendidos), são inspirações reais de François Truffat. Por isso, essas muitas referências presentes no filme funcionam quase como os famosos easter-eggs presentes nas adaptações da Marvel.

Das mesma maneira que as inspirações, Ferrand tem um estilo de direção muito parecido com o de Truffaut e é aí que a metalinguagem é elevada ao grau máximo. Em diversos momentos do filme, as câmeras de François e de Ferrand se confundem em uma mesma cena, quando o espectador vê ambos filmando suas cenas com planos-sequência gigantescos. Outro ótimo exemplo disso é a cena do gato, onde a câmera de Ferrand e Truffaut desfocam ao mesmo tempo e criam um momento metalinguístico singular.

A metalinguagem continua no desenvolvimento dos personagens do filme. Observem como sentimentos e personalidades de muitos desses nos bastidores se misturam com os de seus personagens em A Chegada de Pamela. Os mais óbvios talvez sejam Alphonse, com seu ciúme gigantesco que acaba ditando o final do filme falso, e Julie, que tem uma atração por homens mais velhos na ficção e na vida real.

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É por essas características presentes no filme (algumas podem facilmente passarem despercebidas) que volto a afirmar que nenhum outro filme falou de uma produção cinematográfica de maneira tão completa e elaborada. E olha que a lista de filmes que abordam esse assunto não é pequena, sendo composta de grandes filmes e diretores de várias épocas, como Woody Allen (A Rosa Púrpura do Cairo, 1985) e Martin Scorcese (A Invenção de Hugo Cabret, 2011).

Para um amante do cinema, que sonha em trabalhar nessa área um dia, A Noite Americana é um filme espetacular, já que, além de homenagear a sétima arte, pode funcionar quase como uma aula de cinema por abordar tudo que marca presença em produção desse tipo.

Eu ainda posso dizer que senti uma nostalgia imensa ao ver como eram produzidos os filmes antigamente, com equipamentos mais robustos e complexos e efeitos práticos que estão quase em extinção nessa era da computação gráfica e do fundo verde, marcando presença só em produções mais baratas e independentes.

Ainda posso dizer que gostei de ver como Ferrand amava o cinema, vivia de cinema e, principalmente, via a função de diretor. Seguindo a ideia de cinema autoral defendida por François Truffaut, ele explica, em uma das minhas cenas favoritas, que o diretor deve ser capaz de responder todas as perguntas, mesmo que só saiba a resposta de algumas destas.

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Minha lista de filmes-homenagem que era facilmente liderada pelos ótimos A Invenção de Hugo Cabret (com sua homenagem a Mélies e ao surgimento do cinema) e O Artista (uma homenagem sincera e brilhante ao cinema mudo e sua transposição para a era do som), agora é completada por esse ótimo filme francês.

A Noite Americana é um filme que pode ser assistido por qualquer pessoa, mas vai gerar emoções diferenciadas nos verdadeiros amantes do cinema que vão, por exemplo, rir sozinhos de algumas tiradas específicas e escondidas. Sua visão romantizada e bela do cinema deixa claro que o filme foi feito por um amante do cinema para vários amantes dessa arte única e imortal.

OBS 1: Um dos roteiristas do filme, Jean-Louis Richard, também é o roteirista do clássico do Cine Band Privê, Emmanuelle.

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